domingo, 21 de janeiro de 2018

CENSURA, CARNAVAL E PROTESTO

O ano era 1989. Um dos piores períodos da história recente do Brasil, nos estertores do desmoralizado governo Sarney. As recentes lutas contra a ditadura ainda estavam vivas. Lula disputava sua primeira eleição presidencial, e as greves operárias faziam parte da conjuntura do país. As mazelas sociais estouravam em meio a uma inflação que passava de 80% ao mês e que endurecia a vida da classe trabalhadora. O desconhecido Fernando Collor foi o primeiro presidente eleito de forma direta no pós-ditadura. As consequências nós sabemos.
Foi nesse contexto que o lendário carnavalesco Joãosinho Trinta emprestou seu talento à escola de samba Beija-Flor de Nilópolis com o enredo “Ratos e Urubus, Larguem a Minha Fantasia!”, uma feroz crítica social à miséria e à luxúria da sociedade brasileira. O enredo tratava das desigualdades sociais do país, apresentando na Avenida dois setores: o Brasil do luxo e o Brasil do lixo. Segundo João, o tema era “não só sobre o lixo físico, mas o lixo moral, mental e espiritual, que cria uma multidão de marginalizados, que tiram do lixo as coisas de brilho”.
Para contextualizar esse desfile, vale lembrar que o carnavalesco sempre foi muito criticado pelo excesso de luxo em seus trabalhos. Diziam os detratores de Joãosinho que ele estava descaracterizando o carnaval, e fazendo o samba ser deixado de lado em detrimento dos quesitos plásticos. João não aceitava essas críticas e certa vez teve atribuída a ele a célebre frase: “Pobre gosta de luxo, quem gosta de pobreza é intelectual”.
Poucas semanas antes do carnaval, a Cúria Metropolitana do Rio de Janeiro, então comandada pelo arcebispo Dom Eugênio Sales, toma ciência que João traria, no carro abre-alas da escola, uma escultura do Cristo Redentor caracterizado como mendigo. A ideia inicial era chocar e, principalmente, contrastar com a imagem daquele Cristo de braços abertos e acolhedores para todos, tão difundida nos cartões-postais numa cidade onde os braços do Cristo acolhem a poucos.
Imediatamente, a arquidiocese brigou na 15ª Vara Cível do Rio de Janeiro pela proibição completa da imagem. A Igreja Católica venceu, e o carnavalesco foi obrigado a censurar sua própria alegoria. A decisão chegou ao barracão da escola na antevéspera do desfile como uma bomba. Horas antes do desfile, o carnavalesco não deixou barato e procurou algum método para colocar o Cristo Mendigo na avenida de qualquer maneira. A diretoria sugeriu cobrir a imagem com uma rústica lona preta e pôr em seus braços uma faixa branca com uma frase tão forte como a escultura: “Mesmo proibido, olhai por nós!”.
O início do desfile foi, sem dúvida, a imagem mais impactante da história do carnaval: uma imensa ala de mendigos, todos vestidos com farrapos retirados do próprio lixo, ladeando o abre-alas envolto em sucatas com o Cristo proibido. Talvez ninguém jamais imaginaria assistir a suntuosa Beija-Flor, escola de samba famosa por seus carnavais luxuosíssimos, trajada com estopa e trapos velhos. Tal choque provocado pelo conjunto da escola foi suficiente para fazer todas as arquibancadas virem abaixo em emoção.
A segunda alegoria, chamada “Convite”, releitura foliã dos miseráveis de Victor Hugo, trazia as seguintes inscrições: “Mendigo, desocupados, pivetes, meretrizes, profetas, esfomeados e povo da rua. Tirem dos lixos deste imenso país os restos dos luxos… Façam suas fantasias e venham participar deste grandioso Bal Masqué!” Era um chamado para os excluídos carnavalizados seguirem a proposta da escola e saírem a revirar os entulhos em busca das “coisas de brilho”.
Após uma abertura histórica, despontaram na Avenida alas com críticas duras ao lixo da Igreja Católica, o lixo da guerra, o lixo da imprensa, e, é claro, o lixo da política, com um setor inteiramente vestido de verde e amarelo, com direito a um teatro de revista em uma réplica do Senado Federal. O desfile foi encerrado pelo irreverente carro “O banquete dos mendigos”, composto pelos restos de comida do Bal Basqué e repleto de Exus e pombas-gira. Uma apresentação apoteótica, vista por muitos como o maior desfile de escola de samba de todos os tempos. A Beija-Flor foi notícia em todos o Brasil, e Joãosinho Trinta fez merecer a alcunha de “Mago do povo”.
A Beija-Flor perdeu o carnaval de 1989 para a Imperatriz Leopoldinense por apenas 0,5 ponto. Foi vice-campeã, mas caiu nas graças do povo e mostrou como é possível fazer uma arte livre que questione a sociedade capitalista, fazendo justiça à letra do samba-enredo que dizia: “Firme… Belo perfil! / Alegria e manifestação / Eis a Beija-Flor tão linda, derramando na avenida / Frutos de uma imaginação”. O campeonato da Beija-Flor não foi conquistado, mas a impactante imagem do Cristo Proibido de Joãosinho Trinta permanece eterna.

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