O ano era 1989. Um dos piores períodos da história recente do
Brasil, nos estertores do desmoralizado governo Sarney. As recentes
lutas contra a ditadura ainda estavam vivas. Lula disputava sua primeira
eleição presidencial, e as greves operárias faziam parte da conjuntura
do país. As mazelas sociais estouravam em meio a uma inflação que
passava de 80% ao mês e que endurecia a vida da classe trabalhadora. O
desconhecido Fernando Collor foi o primeiro presidente eleito de forma
direta no pós-ditadura. As consequências nós sabemos.
Foi nesse
contexto que o lendário carnavalesco Joãosinho Trinta emprestou seu
talento à escola de samba Beija-Flor de Nilópolis com o enredo “Ratos e
Urubus, Larguem a Minha Fantasia!”, uma feroz crítica social à miséria e
à luxúria da sociedade brasileira. O enredo tratava das desigualdades
sociais do país, apresentando na Avenida dois setores: o Brasil do luxo e
o Brasil do lixo. Segundo João, o tema era “não só sobre o lixo físico,
mas o lixo moral, mental e espiritual, que cria uma multidão de
marginalizados, que tiram do lixo as coisas de brilho”.
Para
contextualizar esse desfile, vale lembrar que o carnavalesco sempre foi
muito criticado pelo excesso de luxo em seus trabalhos. Diziam os
detratores de Joãosinho que ele estava descaracterizando o carnaval, e
fazendo o samba ser deixado de lado em detrimento dos quesitos
plásticos. João não aceitava essas críticas e certa vez teve atribuída a
ele a célebre frase: “Pobre gosta de luxo, quem gosta de pobreza é
intelectual”.
Poucas semanas antes do carnaval, a Cúria
Metropolitana do Rio de Janeiro, então comandada pelo arcebispo Dom
Eugênio Sales, toma ciência que João traria, no carro abre-alas da
escola, uma escultura do Cristo Redentor caracterizado como mendigo. A
ideia inicial era chocar e, principalmente, contrastar com a imagem
daquele Cristo de braços abertos e acolhedores para todos, tão difundida
nos cartões-postais numa cidade onde os braços do Cristo acolhem a
poucos.
Imediatamente, a arquidiocese brigou na 15ª Vara Cível do
Rio de Janeiro pela proibição completa da imagem. A Igreja Católica
venceu, e o carnavalesco foi obrigado a censurar sua própria alegoria. A
decisão chegou ao barracão da escola na antevéspera do desfile como uma
bomba. Horas antes do desfile, o carnavalesco não deixou barato e
procurou algum método para colocar o Cristo Mendigo na avenida de
qualquer maneira. A diretoria sugeriu cobrir a imagem com uma rústica
lona preta e pôr em seus braços uma faixa branca com uma frase tão forte
como a escultura: “Mesmo proibido, olhai por nós!”.
O início do
desfile foi, sem dúvida, a imagem mais impactante da história do
carnaval: uma imensa ala de mendigos, todos vestidos com farrapos
retirados do próprio lixo, ladeando o abre-alas envolto em sucatas com o
Cristo proibido. Talvez ninguém jamais imaginaria assistir a suntuosa
Beija-Flor, escola de samba famosa por seus carnavais luxuosíssimos,
trajada com estopa e trapos velhos. Tal choque provocado pelo conjunto
da escola foi suficiente para fazer todas as arquibancadas virem abaixo
em emoção.
A segunda alegoria, chamada “Convite”, releitura foliã
dos miseráveis de Victor Hugo, trazia as seguintes inscrições:
“Mendigo, desocupados, pivetes, meretrizes, profetas, esfomeados e povo
da rua. Tirem dos lixos deste imenso país os restos dos luxos… Façam
suas fantasias e venham participar deste grandioso Bal Masqué!” Era um
chamado para os excluídos carnavalizados seguirem a proposta da escola e
saírem a revirar os entulhos em busca das “coisas de brilho”.
Após uma abertura histórica, despontaram na Avenida alas com críticas
duras ao lixo da Igreja Católica, o lixo da guerra, o lixo da imprensa,
e, é claro, o lixo da política, com um setor inteiramente vestido de
verde e amarelo, com direito a um teatro de revista em uma réplica do
Senado Federal. O desfile foi encerrado pelo irreverente carro “O
banquete dos mendigos”, composto pelos restos de comida do Bal Basqué e
repleto de Exus e pombas-gira. Uma apresentação apoteótica, vista por
muitos como o maior desfile de escola de samba de todos os tempos. A
Beija-Flor foi notícia em todos o Brasil, e Joãosinho Trinta fez merecer
a alcunha de “Mago do povo”.
A Beija-Flor perdeu o carnaval de
1989 para a Imperatriz Leopoldinense por apenas 0,5 ponto. Foi
vice-campeã, mas caiu nas graças do povo e mostrou como é possível fazer
uma arte livre que questione a sociedade capitalista, fazendo justiça à
letra do samba-enredo que dizia: “Firme… Belo perfil! / Alegria e
manifestação / Eis a Beija-Flor tão linda, derramando na avenida /
Frutos de uma imaginação”. O campeonato da Beija-Flor não foi
conquistado, mas a impactante imagem do Cristo Proibido de Joãosinho
Trinta permanece eterna.
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