domingo, 22 de setembro de 2019

A primeira certidão de nascimento do país é um crânio de 11 mil anos encontrado em 1975. Mas há quem diga que estamos por aqui há mais tempo.

Durante quase 500 anos o Brasil praticamente ignorou uma parte do seu passado. A maior delas. Na escola, a primeira aula de história começa com o descobrimento do Brasil como se nada tivesse acontecido antes. No entanto, quando os portugueses chegaram, em 1500, civilizações avançadas e poderosas estavam no auge, outras já haviam desaparecido, mas deixado vestígios de passagem e de história no Brasil.
O naturalista dinamarquês Peter Wilhelm Lund, em 1836, foi o primeiro a se interessar pelo Brasil pré-cabralino e tornou-se uma espécie de patrono da arqueologia e da paleontologia no país. Sua descoberta mais importante aconteceu na Gruta do Sumidouro, perto de Lagoa Santa, MG. Em meio aos ossos de grandes mamíferos, ele achou os primeiros fósseis humanos no Brasil.
Em busca do primeiro brasileiro, Peter encontrou mais perguntas que respostas (algumas ainda sem solução). A primeira – e talvez a mais controversa de todas – é como e quando o homem passou a ocupar o território americano e, por extensão, o brasileiro?
A teoria mais aceita é que os primeiros grupos humanos a chegar por aqui atravessaram da Ásia para a América pela Beríngia (região no extremo norte do continente, que há 15 mil anos, durante o fim da era glacial, ligava os dois continentes). A pé, os novos habitantes começaram a migrar para o sul, em busca de regiões mais quentes. Até a Patagônia, no limite sul da América, eles teriam levado algo em torno de 2 mil anos.
Mas há quem discorde. A arqueóloga brasileira Niède Guidon, que há mais de 40 anos estuda os vestígios da presença humana na região da Serra da Capivara, no Piauí, acredita que o homem americano já ocupava o Brasil há mais de 60 mil anos. Sua pesquisa, que tem base em vestígios humanos cujas datações indicaram ter 48 mil anos de idade, é fruto do documentário Niède, de Tiago Tambelli, que acaba de ser lançado no país.
Segundo a arqueóloga, a ocupação das Américas começou entre 80 e 100 mil anos atrás e o primeiro americano teria vindo da  região da Austrália em embarcações simples – uma tese questionada dentro e fora do Brasil. Para os críticos, esperar que um aborígine de mais de 50 mil anos atrás atravessasse o Pacífico seria como pedir a Cristóvão Colombo que, em vez de cruzar o Atlântico para vir ao Novo Mundo, fincasse a bandeira na Lua.
Mas Niède Guidon não está sozinha quando marca o início da presença humana no Brasil, além dos paradigmais 15 mil anos. O trabalho da arqueóloga Águeda Vilhena Vialou, entre o Museu de Arqueologia da USP e o Museu de História Natural de Paris, indicou a existência do homem no Mato Grosso, na Fazenda Santa Elina, há cerca de 23 mil anos. Lá, foram encontradas pinturas nas paredes e grande quantidade de pedras trabalhadas. “Fizemos três datações diferentes, em três materiais distintos: ossos, sedimentos e carvão. Todos à mesma data, entre 22 e 23 mil anos”, contou.
Homens da Lagoa Santa
A arqueóloga Adriana Schmidt Dias, da UFRGS, acredita que o primeiro brasileiro descende de uma das várias correntes migratórias vindas da Ásia, que ocorreram a partir de 15 mil anos atrás. A mais antiga dessas levas de humanos teria chegado ao Brasil há cerca de 12 mil anos e ficado conhecida como Os Homens da Lagoa Santa, nome dado em homenagem ao sítio arqueológico onde foram localizados – o mesmo pesquisado pelo dinamarquês Lund. Desse povo, faz parte o fóssil humano descoberto em 1975, que viveu por aqui há cerca de 11,5 mil anos e foi batizado pelos cientistas de Luzia, a mais antiga brasileira descoberta até hoje.
Mais antiga pintura rupestre da América, encontrada em Lagoa Santa / Crédito: Reprodução

Luzia era uma caçadora e coletora de vegetais, com traços bem distintos dos índios que Pero Vaz de Caminha descreveu em sua carta, em 1500. Em 1999, a Universidade de Manchester, na Inglaterra, reconstituiu o rosto de Luzia: ficaram óbvios os traços negroides, típicos de populações africanas e da Oceania.
Luzia e seus amigos viviam em pequenos grupos e eram nômades, sempre procurando encontrar vegetais e animais de pequeno porte, como o porco-do-mato e a paca, que eles caçavam com a ajuda de lanças e de flechas com pontas feitas de pedras lascadas. Não ficavam mais que duas semanas no mesmo lugar. Por isso, não costumavam enterrar seus mortos. O corpo de Luzia foi encontrado jogado no fundo de uma caverna.
Por volta de 6 mil anos atrás esse povo desapareceu. A explicação para isso é o surgimento de outro grupo de humanos, dessa vez, parecidos com os índios atuais. Eles chegaram em muito maior número e passaram a ocupar a região. As populações se misturaram, segundo Adriana, mas com o tempo as características dos Homens da Lagoa Santa submergiram. Essa nova leva de viajantes chegou a ocupar toda a costa brasileira e o Planalto Central até 2 mil anos atrás.
“Esses bandos chegavam a uma região, montavam acampamento, geralmente em grupos de cinco a dez famílias em pequenas faixas de terra”, diz a pesquisadora. De acordo com ela, eles retiravam da região tudo o que podiam: vegetais, peixes e animais. Assim que esgotavam esses recursos e que os acampamentos apresentavam problemas sanitários, como o aparecimento de insetos em grandes quantidades, iam embora.
Civilização das Conchas
Alguns dos descendentes desses novos habitantes criaram, no litoral do Brasil, uma das civilizações mais características e inusuais do período pré-cabralino. Eles ocuparam do Espírito Santo ao Rio Grande do Sul entre 6 mil e mil anos atrás, e ficaram conhecidos pelas edificações que erguiam para sepultar seus mortos: os sambaquis. São pilhas de sedimentos, principalmente conchas e ossos de animais, cuidadosamente empilhados e que chegavam a ter 40 metros de altura e mais de 500 metros de comprimento.
A princípio, os arqueólogos acreditavam tratar-se de grandes depósitos funerários, mas, com a descoberta sistemática de novos sítios, ficou provado que os sambaquis eram o centro da vida social desses povos, chamados sambaquieiros. Ali, eles sepultavam seus mortos, realizavam rituais e construíam suas casas.
Crédito: Martha Werneck

“Eles se alimentavam basicamente da pesca e da coleta de frutos do mar, feitas com o auxílio de canoas e redes”, explica o arqueólogo Paulo de Blasis, da USP. O sambaquieiro era baixo, no máximo 1,60 metro. A mortalidade infantil era altíssima, entre 30 e 40% dos corpos encontrados eram de crianças. Quem chegava à idade adulta também não ia muito longe: para os homens a perspectiva de vida era de 25 anos e as mulheres chegavam, no máximo, aos 35. Outro mito que as pesquisas vêm derrubando é que os sambaquieiros eram nômades, indo de um lugar para outro assim que se encerravam os recursos naturais.
“Era uma civilização com estabilidade territorial e populacional. Um conjunto de sambaquis como os do sul de Santa Catarina podia reunir até 3 ou 4 mil habitantes”, conta Paulo. Para ele, uma ocupação dessa montada, por tanto tempo, só seria viável com um alto grau de complexidade social, que deveria incluir a divisão de tarefas e instituição de chefias regionais.
Nos sambaquis foram encontrados também esculturas e ornamentos feitos de pedra polida, que eram colocados junto aos corpos sepultados. Representando animais como o tatu e a baleia, esses objetos demonstram um delicado senso estético, que exigia habilidade especial.
Segundo Dione Bandeira, do Museu Nacional do Sambaqui, em Joinville, SC, é possível que houvesse pessoas designadas para produzi-los, até como algum tipo de ritual. Os sambaquieiros desapareceram há cerca de mil anos, com a chegada de povos agricultores vindos do planalto. “Eles provavelmente foram se afastando cada vez mais de seu local de origem, esquecendo suas tradições e se misturando ao conquistador”, descreve o arqueólogo da USP.
Os povos da Amazônia
A Amazônia foi o berço de culturas avançadas, que viveram mais de mil anos antes de Cabral chegar ao Brasil. Os registros mais antigos da presença dos homens na região foram descobertos pela arqueóloga norte-americana Anna Roosevelt, em 1996. Ela encontrou pinturas rupestres datadas de 11 mil anos, na região de Monte Alegre, PA.
 Na região da Ilha de Marajó, uma importante civilização se desenvolveu entre os anos 400 e 1300 d.C. A civilização marajoara dominava a agricultura e possuía aldeias que chegaram a abrigar 5 ou 6 mil habitantes. Os marajoaras eram excelentes engenheiros e construíram aterros artificiais que se elevavam até 12 metros acima do solo.
“Esses aterros exigiam a mobilização de um grande contingente de mão de obra e uma liderança constituída e respeitada”, afirmou o arqueólogo Eduardo Neves, da USP. Tal requinte se refletia na criação de sua cerâmica. De caráter cerimonial, seus desenhos correspondem ao mundo simbólico e religioso dos marajoaras. Eles desapareceram misteriosamente por volta de 1300.
Crédito: Reprodução

Mas a superpotência da época era a civilização tapajônica, que ocupava a região da atual cidade de Santarém, PA. Mesmo depois do contato com os europeus, ainda era uma das maiores e mais poderosas nações indígenas da Amazônia. Objetos de sua cerâmica foram localizados em lugares distantes, o que indica que havia contato intenso entre os tapajós e tribos vizinhas, incluindo comércio. Segundo Eduardo, havia um poder central exercido por chefe tapajó, reunindo várias tribos vizinhas. E algumas aldeias eram tão populosas que seus caciques podiam mobilizar até 60 mil homens para o combate.
 A Amazônia também foi o ponto de partida para a migração de um povo tecnologicamente avançado e conquistador, que levou ao declínio os brasileiros coletores e caçadores, e que se espalhou de forma inédita pelo país: os tupi. Partindo de onde hoje ficam os estados de Rondônia e do Amazonas, eles deixaram a região em duas levas principais: os tupi-guarani desceram o Rio Paraná e chegaram à região sul; os tupinambá seguiram pelo Rio Amazonas até sua foz e, dali, rumo ao sul pela costa.
Eles viviam em grandes aldeias, cujas populações chegavam a ter milhares de pessoas. “Se organizavam em chefaturas, isto é, uma reunião de tribos em que algumas aldeias seriam mais importantes e teriam influência sobre outras”, explica o professor e historiador Paulo Jobim. Segundo ele, as aldeias funcionavam como cidades, com famílias inteiras, com tios, primos, pais, avós e filhos vivendo numa mesma casa.
“A hierarquia das tribos era baseada no parentesco”, diz. Os espaços comuns desses lugares, normalmente na área central, eram dedicados às práticas religiosas e sociais. Eles conheciam a agricultura, principalmente a de hortaliças, de mandioca e de milho, e produziam cerâmicas práticas, principalmente para cozinhar. A guerra, além de demarcar territórios, era tida como oportunidade para o desenvolvimento de lideranças, que se baseavam sobretudo na coragem, na oratória e nos laços familiares.
 A expectativa de vida era curta, não ultrapassando os 40 anos de idade em média. Por isso, os mais idosos eram muito respeitados, ocupando papel de destaque na sociedade. A divisão do trabalho também era feita por sexos: os homens caçavam, as mulheres coletavam, cuidavam das crianças e do preparo do solo para a agricultura. Além disso, eram as responsáveis pela produção da arte em cerâmica.
 “Os guarani eram um povo conquistador e exclusivista”, descreve o historiador Pedro Schmitz. “Seus parentes tornavam-se aliados, mas outros povos eram considerados inimigos e expulsos, dizimados ou incorporados, às vezes, literalmente, já que eram antropófagos.” Os nossos descendentes que estavam na praia, naquela manhã de 22 de abril de 1500.
Amazônia

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