quarta-feira, 26 de dezembro de 2018

Por volta do ano 610, durante o mês do Ramadã, um mercador árabe da cidade de Meca, no Hedjaz, teve uma experiência que, em última instância, transformaria a história do mundo.

Do diminuto e escarpado topo da montanha via-se com clareza a próspera cidade de Meca na planície abaixo. Como todos os habitantes de Meca, Maomé tinha grande orgulho de sua cidade, que se tornara um centro financeiro e a aglomeração urbana mais poderosa da Arábia. Os comerciantes de Meca haviam se tornado os árabes mais ricos do Hedjaz e desfrutavam de uma segurança que teria sido impensável duas gerações antes, quando ainda viviam a árdua vida nômade das estepes. Acima de tudo, os habitantes de Meca tinham imenso orgulho da Caaba, o antigo santuário em forma de cubo situado no centro da cidade, que muitos acreditavam ser de fato o templo de al-Llah, o Deus Supremo dos árabes.
Era o santuário mais importante da Arábia e, todos os anos, peregrinos de todas as partes da península vinham para a peregrinação do hajj. A tribo dos quraysh [coraixitas], tribo de Maomé, fora a responsável pelo sucesso comercial de Meca e sabia que grande parte de seu prestígio junto às demais devia-se ao fato de ter o privilégio de guardar o enorme cubo de granito e de assegurar que sua sacralidade fosse preservada
Alguns árabes acreditava, que al-Llah, cujo nome quer dizer tão-somente “o Deus”, era a mesma divindade adorada por judeus e cristãos. Mas, diferentemente dos Povos do Livro, como chamavam a essas duas veneráveis religiões, os árabes tinham dolorosa consciência de que ele jamais lhes enviara revelação ou Escritura própria, mesmo seu santuário estando entre eles desde tempos imemoriais.
Os árabes que entravam em contato com judeus e cristãos sentiam um agudo senso de inferioridade: era como se Deus os houvesse excluído de seu plano divino. Isso mudou na décima sétima noite do Ramadã, quando, na caverna do monte Hira, Maomé foi arrancado de seu sono e se sentiu tomado pela devastadora presença divina. Mais tarde, ele explicaria essa experiência inefável dizendo que um anjo o envolvera num terrível abraço que o fez sentir como se o ar estivesse sendo expelido para fora do corpo. O anjo deu-lhe uma ordem seca: “iqra!” — “Recita!”.
Maomé, em vão, alegou que não sabia recitar; ele não era um kahin, um dos profetas extáticos da Arábia. Mas, disse ele, o anjo simplesmente o abraçou de novo até que, quando pensou haver ter chegado ao limite da resistência, sentiu saírem-lhe boca afora as palavras divinamente inspiradas de uma nova Escritura. A Palavra de Deus falava pela primeira vez em solo árabe, e Deus havia finalmente se revelado aos árabes em sua própria língua. O livro sagrado se chamaria al-Qu’ran — Alcorão: a Recitação.
Maomé, de Karen Armstrong

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