Com uma espada na mão e o Corão na outra, os africanos conhecidos
como malês puseram Salvador em pânico na noite de 24 para 25 de janeiro
de 1835.
Os poucos soldados da polícia de Salvador que foram
acompanhar o que parecia outra averiguação de rotina sobre escravos
rebeldes, numa madrugada sonolenta de janeiro de 1835, provavelmente
tiveram a pior surpresa de suas vidas ao dar de cara com aquela cena. De
espada em punho, um bando enfurecido de uns 50 homens negros partiu
para cima dos incrédulos policiais, gritando “mata soldado” e palavras
de ordem em idiomas africanos.
De repente, o papel de escolta do
juiz de paz Caetano Galião, que comandava a diligência, deu lugar a uma
reação desesperada para tentar salvar a própria pele. Carregando
afobados as espingardas, os soldados nada puderam fazer para impedir o
avanço dos guerreiros africanos, que mataram um patrulheiro e feriram
outros quatro, ganhando a seguir as ruas da cidade. Começava o que
ficaria conhecido como “levante dos malês”, uma rebelião comandada por
muçulmanos em plena Bahia.
Revolta urbana
Esse primeiro
esquadrão de revoltosos, impelido a começar o levante algumas horas
antes do combinado devido à delação de outros africanos, alertou os
demais grupos malês da cidade para se unirem ao combate. No fim das
contas, centenas de muçulmanos e seus aliados enfrentaram o Exército nas
ruas de Salvador durante a madrugada, no que foi a maior revolta urbana
de escravos das Américas.
A documentação da época sobre o
levante não é muito clara quanto ao objetivo final dos rebeldes, mas há
indícios de que eles pretendiam implantar um Estado comandado por
africanos islâmicos, no qual até os negros e mulatos nascidos no Brasil
teriam um status subalterno.
Aos poucos, as investigações do
governo baiano sobre o levante foram revelando uma rede clandestina de
propaganda islâmica, que unia os escravos que já tinham vindo da África
como muçulmanos a outros convertidos no Brasil e a africanos adeptos de
outras religiões.
Graças ao ambiente um pouco menos sufocante da
escravidão urbana na Bahia, os malês conseguiram criar uma organização
rebelde bem diferente da representada pelos quilombos, em geral formados
por escravos que escapavam de grandes propriedades rurais. “A maioria
das mais de 20 conspirações e levantes escravos acontecidos na Bahia na
primeira metade do século 19 envolveu escravos rurais dos engenhos do
Recôncavo”, afirma o João José Reis, autor de Rebelião Escrava no
Brasil – A História do Levante dos Malês, 1835, um dos principais
estudos sobre o tema.
Rebelião
A África e o Brasil que
produziram a rebelião malê eram bem diferentes da situação que favoreceu
a existência do quilombo de Palmares por quase 100 anos durante o
século 17. E isso a começar pela própria região de origem dos negros
trazidos para a Bahia no final do século 18 e começo do 19.
Em
vez das tribos de agricultores angolanos que predominavam no início da
colonização, a principal fonte de novos escravos para Salvador e os
engenhos de açúcar baianos eram os belicosos reinos da África Ocidental,
onde hoje é a Nigéria. “Eram as civilizações mais desenvolvidas da
África negra”, afirma o historiador Décio Freitas, ex-professor da
Universidade Federal de Alagoas.
Donos de tecnologia comparável à
da Europa medieval e totalmente integrados às rotas de comércio que
uniam a África ao Ocidente, povos como os iorubás, os jejes e os haussás
chegaram a formar Estados poderosos, muitos deles já influenciados pelo
islamismo. Contudo, naquela época, tais nações não estavam durando
muito, dizimadas por uma série catastrófica de conflitos.
O
destino dos guerreiros derrotados ou o de sua família tanto podia ser o
trabalho de pastor escravo no reino iorubá de Oyo, quanto a terrível
travessia do Atlântico rumo à Bahia. A moeda que pagava essa viagem sem
volta normalmente era o fumo baiano. “É graças a esse rentável comércio
de fumo que a Bahia foi a única região do Brasil a receber escravos
sudaneses em grande quantidade”, diz Décio.
Não demorou muito
para que os senhores de escravos percebessem que estavam dormindo com o
inimigo, já que décadas de guerras internas ou contra Estados rivais
haviam forjado uma forte tradição guerreira entre os africanos
recém-chegados. Para João Saldanha da Gama, o conde da Ponte, governador
português da província entre 1805 e 1810, os novos escravos pertenciam a
“Naçoens as mais guerreiras da Costa Leste” e eram uma séria ameaça à
paz.
Problemas ainda mais sérios
Dentro de alguns anos,
contudo, os baianos se viram às voltas com problemas ainda mais sérios.
No rastro da independência do Brasil, foi preciso retomar em combate a
própria Salvador das mãos dos portugueses, e a província toda, assim
como diversas outras regiões do país, virou palco dos conflitos entre
brasileiros e portugueses que permaneceram aqui, sem falar nas rebeliões
militares e nas revoltas das camadas mais pobres da população contra a
crise econômica.
O cheiro de insurreição contra os impopulares
regentes, que estavam no poder enquanto o jovem dom Pedro II ainda era
menor de idade, estava tão forte no ar que o levante dos malês explodiu
no mesmo ano que a Revolução Farroupilha, no Rio Grande do Sul, e a
Cabanagem, no Pará.
Como se não bastasse todo esse fermento
revolucionário, boa parte dos escravos de Salvador (dos quais 63% tinham
nascido na África) gozavam de um grau de liberdade insuspeito. É que,
diferentemente dos negros que se esfalfavam nos engenhos, muitos deles
nem moravam com seus senhores ou, quando isso acontecia, trabalhavam o
dia todo fora de casa. Era a chamada escravidão de ganho, na qual os
escravos exerciam os mais variados ofícios (vendedores ambulantes,
pescadores, pedreiros, carregadores de cadeiras) para sustentar o
próprio dono, trazendo-lhe depois o que conseguiam trabalhando.
Livres na cidade
Alguns até podiam ficar com uma porcentagem (ridícula, obviamente) do
que ganhavam, e com esse dinheiro compravam mais tarde a própria
alforria. Além de gerar um número considerável de libertos (que incluía
também os que eram libertados pelo patrão por qualquer que fosse o
motivo), esse sistema permitia que os negros montassem sua própria rede
de amizades e contatos.
Entre os malês, por exemplo, não era
raro encontrar um liberto morando no andar térreo de um sobrado que
alugava a sua “loja” (uma espécie de porão das antigas casas coloniais)
para um escravo e este, por sua vez, alugava um cantinho do lugar a
outro amigo.
Foi graças a isso tudo que a revolta começou a tomar
forma em Salvador. Inadvertidamente, os traficantes de escravos
acabaram trazendo para as praias baianas não só guerreiros experientes,
mas também pessoas que frequentaram escolas onde se ensinava a ler e
escrever em árabe, a recitar as suras ou versículos do Corão e a seguir
os demais preceitos do profeta Maomé.
A maioria dos que tomaram
parte no levante parece ter sido de origem iorubá (ou nagô, como se
dizia na Bahia de então), etnia africana criadora da religião dos
orixás, mas entre a qual o Islã estava em expansão no começo do século
19. A própria palavra “malê” parece vir do termo iorubá imale, que quer
dizer “muçulmano”.
Sujeitos como os escravos iorubás Ahuna e
Pacífico Licutan, pessoas experientes, muito cultas e carismáticas, logo
se puseram a unir em torno de si seus companheiros que já eram
muçulmanos e a espalhar a palavra de Maomé entre outros escravos. Essa
pregação incluía ensinar a ler e escrever em árabe, a recitação de
passagens do Corão e a distribuição de pequenos amuletos de couro,
recheados com trechos do livro sagrado. Esses talismãs foram muito
difundidos e eram considerados poderosos até por quem não era islâmico.
Aparentemente, a ideia de uma revolta só foi tomando corpo devagar.
Denúncia
A princípio, os malês se contentavam em organizar um fundo comum para
pagar alforrias uns dos outros, ou em se reunir para celebrar sua
religião. Segundo João José Reis, o grupo chegou até a construir uma
espécie de mesquita – uma palhoça no quintal dos fundos do inglês
conhecido como Abraham, senhor dos escravos malês James e Diogo. Ali,
eles conseguiram celebrar o Lailat al-Miraj, festa que comemora a
ascensão de Maomé ao céu, no final de novembro de 1834.
Tudo
ótimo, se não fosse o aparecimento do inspetor de quarteirão Antônio
Marques, que pôs os pobres malês para correr e denunciou a reunião às
autoridades baianas. Abraham, tentando evitar problemas para si próprio,
ordenou que seus escravos pusessem a mesquita abaixo. “Não é impossível
que essa última humilhação tenha sido o estopim da revolta”, afirma
João Reis.
Tanto a união em torno do Islã quanto a solidariedade
étnica influenciaram os rebeldes. Para Décio Freitas, foi o cimento
religioso que conseguiu unir povos diferentes e até inimigos entre si no
mesmo levante. “O grande problema dos africanos aqui é que eles eram
muito diferentes uns dos outros. Em Palmares, foi preciso até inventar
uma nova língua, com base em vários idiomas africanos e no português.
Uma religião universal como o Islã conseguiu aglutiná-los”, diz Décio.
Mesmo assim, era difícil esquecer as velhas divisões. “Em 1835, nem
todo muçulmano entrou na revolta e nem todo rebelde era muçulmano”, diz
João José. Segundo ele, os haussás, por exemplo, que constituíam o grupo
étnico mais numeroso entre os mais islamizados, compareceram com poucos
guerreiros. O movimento foi levado a cabo sobretudo por muçulmanos de
origem iorubá, os nagôs.
Esse contorno étnico da revolta
permitiu, por seu turno, que muitos nagôs não-islamizados, mas que
acreditavam na solução armada para a liberdade e na força protetora dos
amuletos malês, entrassem no levante.
Guerreiros do Ramadã
Seja como for, não poderia haver data mais religiosa para a revolta. O
dia 25 de janeiro, um domingo, era a festa de Nossa Senhora da Guia, mas
também o dia 25 do mês muçulmano do Ramadã – época do ano consagrada ao
jejum, na qual acreditava-se que espíritos malignos e forças do mal
eram neutralizadas. O plano era simples: ao amanhecer, a vanguarda dos
rebeldes, espalhada por vários grupos menores na cidade, reuniria o
maior número possível de africanos e depois iria se juntar aos adeptos
da zona rural do Recôncavo.
A ideia era tomar o poder matando
todos os nascidos no Brasil, inclusive outros negros, embora alguns
depoimentos falem em conservar os mulatos como escravos dos vitoriosos. O
inimigo principal, é claro, eram os brancos.
Informações sobre o
levante, porém, vazaram no começo da noite anterior, por meio de alguns
libertos que, sabendo do plano, o denunciaram a seus ex-senhores.
Estes, por sua vez, alertaram o presidente da província da Bahia,
Francisco de Souza Martins. Sem perder um segundo de tempo, ele reforçou
a guarda do palácio do governo, colocou todos os quartéis da cidade em
alerta e redobrou as rondas noturnas. As casas de africanos suspeitos
começaram a ser reviradas no início da madrugada.
Foi então que
explodiram os confrontos, por volta da 1h30 da manhã, na “loja” onde
morava Manoel Calafate, um dos líderes malês. Tentando arrombar a casa
onde parte dos conspiradores se reunia, a patrulha ficou impotente
diante dos muitos guerreiros muçulmanos, armados de espadas e vestindo o
abadá, espécie de camisolão branco que era o traje ritual dos malês. A
maioria deles subiu a Ladeira da Praça, onde estava o sobrado de
Calafate, enquanto outros pularam o muro dos fundos e seguiram outro
caminho. Ambos os grupos tentavam acordar e reunir o maior número
possível de adeptos do movimento, muitos dos quais ficaram desnorteados
com o início precoce do levante.
A primeira parada foi a praça do
Palácio. A intenção dos malês era arrancar da cadeia seu líder Pacífico
Licutan, preso para ser leiloado por causa de uma dívida de seu senhor.
Má ideia: os guardas da prisão, que ficava no subsolo da Câmara
Municipal, se entrincheiraram e disparavam sem parar sobre os africanos,
que também ficaram sob fogo cerrado dos guardas do palácio
governamental. Os rebeldes mataram só um dos guardas palacianos e saíram
dali, recebendo reforços de todos os lados.
Uma tentativa de
tomar o quartel do convento de São Bento repetiu o que acontecera na
prisão: os soldados se fecharam dentro da fortaleza e acabaram repelindo
os malês. A essa altura, alguns deles já tinham morrido.
Depois
desse último combate, o grupo conseguiu se reorganizar perto do convento
das Mercês, para onde se dirigiram mais malês vindos do bairro da
Vitória, muitos deles escravos de uma colônia de ingleses do lugar. O
ataque seguinte dos malês, que já contavam centenas de guerreiros, foi
sobre o quartel de polícia no largo da Lapa. Tudo conforme o figurino de
novo: dos 32 guardas, dois foram mortos, enquanto os demais recuaram
para o interior do quartel e, à bala, impediram que os malês o tomassem.
Após mais algumas escaramuças, os rebeldes viram que aquilo não estava
funcionando. Decidiram deixar a cidade e buscar seus companheiros que
viviam no Recôncavo, mas no meio do caminho havia um quartel da
cavalaria baiana, numa localidade chamada Água de Meninos. Tentando
passar, foram recebidos com uma saraivada de balas e forçados a combater
a cavalaria lá fora, enquanto aguentavam os disparos dos soldados a pé
dentro do quartel.
Foi um massacre. Uma primeira carga de
cavalaria dispersou o grupo inicial de 50 ou 60 africanos e passou a
caçá-los pela estrada. Logo chegaram mais malês, mas não dava para
suportar por muito tempo os tiros ininterruptos que vinham do quartel,
ainda mais com o baixíssimo número de armas de fogo de que dispunham os
rebeldes.
Um segundo ataque dos soldados montados encerrou
qualquer resistência. No total, cerca de 70 rebeldes tinham morrido,
contra apenas nove soldados e civis baianos. Bem antes de amanhecer,
tudo estava terminado.
Saldo da derrota
A devassa que se
seguiu puniu cerca de 500 africanos, mas como muitos processos estão
incompletos é difícil identificar a sentença de todos eles. Apenas
quatro foram condenados à morte, já que isso acarretaria prejuízos
sérios a seus senhores, que recorreram quase invariavelmente desse tipo
de sentença. Muitas chibatadas, em geral na casa das centenas,
aguardavam 45 deles, enquanto 34 foram deportados de volta à África. É
difícil especular qual teria sido o destino da rebelião, se ela tivesse
sido vitoriosa.
“Isso não fica claro, exceto que seria uma
sociedade controlada pelos africanos, possivelmente pelos nagôs
islamizados. Mas eles não conseguiriam manter-se no poder sem alianças
sólidas com outros grupos étnicos e sobretudo com os numerosos nagôs
adeptos do culto aos orixás”, diz João José. “A delação certamente selou
a sorte dos rebeldes mais cedo, mas os fatores se encontram tanto entre
os africanos como entre seus adversários. Além de mais bem armados,
estes estavam unidos quando se tratava de dar combate aos africanos,
para o que contavam com brasileiros de todas as classes e cores,
escravos ou não.”
O controle sobre os escravos cresceu na Bahia,
mas a revolta também ajudou a impor uma redução do tráfico negreiro e,
finalmente, sua extinção em 1850, por medo de que mais africanos se
unissem como os malês. Segundo João José, os escravos baianos ganharam
fama de rebeldes e, de certa forma, isso pode ter aumentado seu poder de
barganha junto aos senhores. “O medo foi uma consequência nada
desprezível que a revolta de 1835 conseguiu fincar por muito tempo na
mente senhorial”, afirma."
AUTORIA: Reinaldo José Lopes
FONTE: http://aventurasnahistoria.uol.com.br/…/males-jihad-na-bahi…
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