Cristo, os fragmentos dos ossos de São Pedro estão guardados nos
porões do Vaticano, com direito à vigilância severa da renomada Guarda
Suíça. No entanto, os restos mortais do primeiro papa encontram-se quase
desprotegidos se comparados ao tratamento dispensado aos documentos de
Karl Marx no Arquivo Nacional da Rússia: uma câmara à prova de bombas
protege suas cartas e manuscritos. Trata-se de um exemplo do desafio
diante de qualquer tentativa de compreender um pouco mais sobre a vida
do intelectual alemão. Embora não tenha fundado formalmente uma religião
ou existam registros de milagres e afins, Marx foi catapultado ao posto
de Messias em cujo nome se lutaram guerras e se construíram impérios
num espaço de tempo bem menor que o usado pelo cristianismo – e os
inevitáveis deslizes do pai do comunismo não estão disponíveis
facilmente. Para os guardiões da antiga União Soviética, homem e regime
se confundiam.Mito e realidade
Passados
134 anos de sua morte, Marx permanece uma figura mitológica. Se o
desmoronamento dos regimes socialistas da Europa Oriental causou abalos
em sua reputação, o filósofo que misturava pensamento e ação e criou o
conceito de ditadura do proletariado tampouco foi esquecido: em 2005,
quase 20 anos depois da queda do Muro de Berlim, foi ele quem venceu uma
enquete da BBC para eleger o maior filósofo de todos os tempos. Isso
mesmo, no Reino Unido, em que o Partido Trabalhista precisou varrer o
viés socialista de seus estatutos e de suas políticas para retomar o
poder com Tony Blair, em 1997, o criador do comunismo ainda conserva sua
popularidade.
Na década passada, Marx já tinha levado safanões em
sua auréola vermelha. Na primeira biografia de destaque publicada após o
fim da Guerra Fria, o jornalista britânico Francis Wheen expôs um Karl
Marx que estava bem longe da figura magnânima imortalizada em estátuas e
estandartes em Moscou, Pequim ou Havana. Ele foi apresentado como
bêbado, parasita e adúltero.
Wheen abriu as portas para um
releitura de Marx que não se concentra apenas no debate ideológico. Sua
missão era desvendar seu lado humano, ao contrário das milhares de
leituras sobre dialética a respeito de sua produção filosófica. Em 2011,
a jornalista norte-americana Mary Gabriel encontrou um ângulo ainda
mais original: uma narrativa focada na vida familiar de Marx, sobretudo
em seu turbulento relacionamento com a esposa, Jenny. Tanto Wheen quanto
Gabriel tiveram acesso a documentos ligados ao filósofo, incluindo sua
correspondência pessoal. Ambos revelam que Marx nunca foi santo – nem de
longe. Mas também não pode ser demonizado. “Esse é o grande problema
quando o assunto é Marx. Por causa de seu impacto histórico, a
polarização é constante. No Ocidente ele volta é meia é ridicularizado,
enquanto Rússia e China ainda o apresentam como uma figura religiosa. Os
dois lados erram ao passar ao largo do aspecto humano”, afirma Mary
Gabriel.
Na verdade, a idealização ou demonização de Marx não
nasceram com a Guerra Fria ou após a derrocada do socialismo. Ela tem
origem em 1883, ano em que Marx, aos 64 anos, não resistiu aos efeitos
de uma infecção pulmonar e da tristeza pela morte da mulher, dois anos
antes. Mal seu corpo baixou à sepultura no Cemitério de Highgate, no
norte de Londres – o enterro, segundo relatos de amigos e parentes, foi
acompanhado por menos de 15 pessoas – e uma operação de endeusamento
começou. Como sugere a audiência do funeral, Marx estava longe, muito
longe de ser uma celebridade quando deixou este mundo. Mas entre os
presentes à cerimônia estava Wilhelm Liebknecht, um dos fundadores do
Partido Social-Democrata alemão e um dos principais responsáveis pela
divulgação de suas ideias – nas eleições parlamentares de 1890, por
exemplo, a legenda, de inspiração marxista, obteve 20% dos votos na
Alemanha.
Filho bastardo
Foi
a partir de esforços de personagens como Liebknecht que a mitificação
de Marx teve início, ainda que a explosão tenha vindo com a Revolução
Russa de 1917, o primeiro experimento marxista em larga escala, com
direito à aplicação de seus modelos de sociedade e a implementação da
“ditadura do proletariado” pelos bolcheviques seguidores de Vladimir
Lenin. A glorificação de Marx e a omissão de sua humanidade viraram
regra, por mais que um estudo minucioso da correspondência particular da
família do filósofo mostre uma oposição ferrenha a qualquer tipo de
censura ou embelezamento. Mesmo depois de Eleanor, uma de suas filhas,
descobrir em 1895 um terrível segredo do pai: Marx não apenas tivera um
caso com Helene Demuth, a governanta da família, mas engravidou a
serviçal durante uma viagem da mulher.⇨
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