quinta-feira, 13 de agosto de 2020

A "fuga" para o Brasil: um exercício de história comparativa Não foi fuga, mas embarque.

Não foi fuga, mas embarque

1. 15 de Novembro de 1940. Uma imensa frota composta pela totalidade dos efectivos da Royal Navy, deixa os portos da Grã-Bretanha, prevendo-se a sua formação em comboio nas imediações da Islândia. No navio-almirante da RN, o cruzador de batalha HMS Hood, seguem o rei Jorge VI e a rainha Isabel, enquanto o recentíssimo King George V transporta as princesas Isabel e Margarida. Os restantes membros da família real viajam em outros couraçados e cruzadores, assim como os soberanos e governos exilados da Holanda e Noruega. O primeiro ministro Winston Churchill, acompanhado pela família e por altas patentes da Armada, segue no Repulse, encontrando-se o gabinete de guerra britânico espalhado, também por razões de segurança, por outros navios.Couraçados, cruzadores, porta-aviões e todas as unidades menores e auxiliares são acompanhadas por centenas de navios de comércio, carregados de documentos, oficiais do exército, marinha e RAF, além do tesouro do Banco da Inglaterra. O destino é o Canadá, refúgio onde o legítimo governo estabelecerá a base para a continuação da guerra contra a vitoriosa Alemanha. As Ilhas Britânicas estavam na iminência de ser totalmente ocupadas pela Wehrmacht, após o sucesso do Adlertag e da Operação Leão Marinho.

Centenas de quilómetros a sul, a esquadra do Mediterrâneo Ocidental, escapando à destruição no porto de Gibraltar, recolhia em Lisboa o governo de Salazar e o presidente Carmona. Acompanhada pela pequena mas recente esquadra portuguesa, tinha como destino provisório os Açores, onde a soberania seria mantida. Esta retirada tornara-se imprescindível pelo desencadear da Operação Isabella, que reunindo o exército espanhol de Franco e os efectivos alemães destinados à ocupação de Gibraltar e de Portugal, previa a transformação da Península numa base avançada do Eixo, fechando o Mediterrâneo e o Atlântico Norte à navegação aliada.

Era este um cenário possível, no caso do colapso britânico no Verão-Outono de 1940. A transferência do governo inglês para um outro território da Commonwealth, deixaria intactas as possibilidades quanto ao desfecho da guerra mundial iniciada um ano antes. Negando-se à rendição, não existia qualquer probabilidade de entrega forçada da esquadra e de qualquer território ultramarino, ao mesmo tempo que os Estados Unidos eram forçados a reagir à nova situação criada. Essa retirada, seria hoje encarada como um alto serviço prestado ao mundo e à causa Aliada e uma clara demonstração de firmeza e determinação. Podemos imaginar apenas o que escreveriam os historiadores do nosso tempo, mas decerto a avaliação não poderia deixar de ser positiva.

2. Em absoluto contraste, temos uma vez mais a realidade portuguesa, que após 200 anos decorridos sobre a invasão franco-espanhola, ainda discute a conveniência ou o acerto da transferência do governo e corte para o Brasil, apodando-a muitos - os mesmos de sempre -, como fuga. Não se foge quando a bordo da quase totalidade esquadra real parte o governo em peso, a rainha e o regente com a família, o tesouro do Estado, a biblioteca real (que ficou para sempre no rio de Janeiro), documentos e bens de toda a espécie. Acompanhada por muitas dezenas de navios de comércio, a esquadra de guerra furtou-se à sua utilização por Napoleão. O príncipe regente e a família, símbolos da soberania, não vão negociar nem espolinhar-se aos pés do Corso. Chegado ao Rio, o soberano tem como primeira medida declarar guerra à França, guerra esta que se prolongará até à entrada do exército português em Toulouse (1814). Em toda a Europa, o presidente-coroado Napoleão I tinha manipulado, ofendido e humilhado os soberanos e as nações. Retalhara impérios seculares, criara novos Estados à medida dos seus interesses e da sua família. Espezinhara direitos adquiridos e violara todas as regras da diplomacia, levando Talleyrand a pronunciar a célebre frase ..."o que é excessivo torna-se insignificante"... Bonaparte estabeleceu uma tirania em todo o continente, impondo pautas aduaneiras abusivas, saqueando recursos dos países ocupados e estabelecendo a desigualdade como base de consolidação da França imperial. A política de destruição e de saque, acompanhada por todo o tipo de atrocidades sobre as populações era o quadro geral que se oferecia. Contudo, sempre houve quem entendesse ir ao encontro do invasor, procurando o entendimento possível que permitisse o exercício de um qualquer tipo de poder, por muito ilusório que fosse. Assim aconteceu com a deputação enviada à pressa a Baiona, prestando vassalagem ao conquistador que já tinha como refém o sogro do príncipe regente, o rei Carlos IV de Espanha. Cedendo e negociando, a Espanha sujeitou-se a todas as arbitrariedades imagináveis, tendo mesmo que suportar a colocação no trono do inepto José Bonaparte, arvorado em simples maire de Madrid com o pomposo título de rei da Espanha e das Índias.

Numa época em que a honra ainda contava no âmbito das relações internacionais, o futuro D. João VI poupou-nos a tudo isto. No memorial de Santa Helena, Bonaparte acaba por reconhecer o fracasso da sua política no ocidente, quando viu frustrado o seu projecto de capitulação portuguesa. Nada surpreendente é a posição da generalidade dos académicos brasileiros, que julgam esta transferência da corte e governo de uma forma absolutamente positiva. Não se encontrando comprometidos com os interesses e "legitimações" dos regimes que têm vigorado em Lisboa, estabelecem a partida da família real como um marco imprescindível para a compreensão dos acontecimentos que, tendo garantido a sobrevivência de um Portugal independente, conduziram também à pacífica independência do Brasil. E nisto são inamovíveis. Os náufragos da putrefacta barcaça de 1968 encontram sempre motivos para o amesquinhar da nossa História. Desprezando o povo de que fazem parte, são eles, em suma, os principais responsáveis pela actual situação de ignorância, cobardia e desânimo vigentes. Do alto das suas pretensas cátedras, não ensinam: balbuciam lugares comuns, enraízam preconceitos. Intimamente, têm consciência da sua pequenez, não pesquisando e rejeitando todo o trabalho sério que possa abalar as suas periclitantes e risíveis certezas. Destes, Portugal nada pode esperar. Não alfabetizaram, não despertaram um verdadeiro espírito científico nos estudantes e pior que tudo, são totalmente incapazes de construir a base mais sólida de qualquer verdadeira democracia: o espírito cívico.

MCB Fonte: Nova Portugalidade

 

Nenhum comentário:

Postar um comentário