quarta-feira, 15 de julho de 2020

Um breve resumo do tráfico transatlântico de escravos .

por David Eltis (Emory University)
Mas por que os escravos eram sempre africanos? Uma possível resposta baseia-se nos diferentes valores das sociedades do mundo atlântico e, mais particularmente, no modo como os grupos de pessoas envolvidas na criação de uma comunidade transatlântica viam a si próprios em relação aos outros — em suma, como eles definiam a sua identidade. A tecnologia de navegação marítima dos europeus colocou-os em contato próximo e constantes com povos que diferiam mais deles, cultural e fisicamente, do que qualquer outro povo com o qual eles tinham interagido no milênio anterior. Inicialmente — excetuando-se, em parte, a Angola ocidental — os europeus não conseguiam controlar territórios nem na África nem na Ásia. Como os africanos tinham capacidade de resistir aos europeus, as plantations de açúcar foram estabelecidas nas Américas e não na África. Mas se os africanos, com a ajuda de agentes patogênicos tropicais, eram capazes de resistir aos invasores potenciais, alguns deles estavam dispostos a vender escravos para os europeus utilizarem nas Américas. A dominação europeia dos ameríndios havia sido completa — aliás, do ponto de vista europeu, completa até demais. O impacto epidemiológico do Velho Mundo destruiu não só as sociedades nativas americanas como também toda uma fonte potencial de mão de obra.
Todas as sociedades humanas até o ano de 1900 tinham ao menos uma resposta pronta para a questão de quais grupos devem ser considerados elegíveis para a escravização, e elas não costumavam recrutar em massa membros de sua própria comunidade. A revolução na tecnologia de navegação deu aos europeus a capacidade de ter acesso contínuo a povos remotos, e a transportá-los contra a sua vontade por distâncias muito longas. Surpreendentemente, era muito mais barato obter escravos na Europa do que enviar um navio até uma costa africana que poderia estar infectada, desprovida de portos adequados e afastada das potências políticas, financeiras e militares europeias. O fato de esta possibilidade nunca ter sido levada a sério indica que os europeus eram incapazes de escravizar outros europeus. Fora o caso de uns poucos indivíduos socialmente desviantes, nem os africanos nem os europeus escravizavam membros de suas próprias sociedades, mas no início do período moderno os africanos tinham uma concepção de quem era elegível para a escravização que era um tanto mais estreita do que a dos europeus. Essa diferença explica a explosão do tráfico de escravos transatlântico. A escravidão, desaparecida há muito do noroeste da Europa, intensificou-se rapidamente, assumindo uma importância e intensidade inéditas na história da humanidade. A principal causa foi um descompasso entre as concepções africana e europeia a respeito da elegibilidade para a escravização, em cujas raízes encontram-se a cultura, as normas sociais, que não estão claramente ligadas à economia. Sem esse descompasso, não teria havido escravidão africana nas Américas. O tráfico de escravos foi, portanto, consequência de construções diferentes de identidade social e da tecnologia de navegação que colocou as sociedades atlânticas em contato súbito umas com as outras.
Portanto, o tráfico de escravos transatlântico cresceu a partir de uma forte demanda de mão de obra nas Américas, impulsionada pelos consumidores — inicialmente europeus — dos produtos de plantations e metais preciosos. Como os ameríndios morriam em grande quantidade e era insuficiente o número de europeus dispostos a cruzar o Atlântico, a forma que essa demanda adquiriu foi moldada por concepções de identidade social em quatro continentes, o que garantiu que o trabalho escravo fosse constituído principalmente por escravos trazidos da África. Mas as perguntas centrais — quais povos da África foram para uma determinada região nas Américas, e que grupo de europeus ou de seus descendentes organizou um movimento como esse — não podem ser respondidas sem uma compreensão dos ventos e correntes marítimas do Atlântico Norte e do Atlântico Sul. Há dois sistemas de ventos e correntes marítimas nos Atlânticos Norte e Sul que são como rodas gigantes — um está ao norte do equador e gira no sentido horário; o outro, ao sul, gira no sentido anti-horário. A roda norte moldou em grande parte o tráfico de escravos do norte da Europa, e foi dominada pelo tráfico inglês. A roda sul moldou o enorme tráfico para o Brasil, que durante três séculos foi quase exclusivo dos maiores traficantes de escravos de todos, os portugueses. (1) Apesar de arvorarem a bandeira portuguesa, os traficantes de escravos que navegavam pela roda sul administravam seus negócios em portos brasileiros, e não em Portugal. Os ventos e as correntes asseguraram, portanto, duas grandes rotas de escravos — a primeira com raízes na Europa, e a segunda no Brasil. Os ventos e as correntes também determinaram que os africanos transportados para o Brasil viessem predominantemente de Angola, enquanto o sudeste da África e o golfo do Benim desempenhavam papéis secundários; e que os africanos levados para a América do Norte, o Caribe incluído, viessem principalmente da África Ocidental, em sua maioria dos golfos de Biafra e Benim e da Costa do Ouro. Mas, assim como o Brasil cruzava a fronteira entre os sistemas traficando no golfo do Benim, ingleses, franceses e holandeses também trouxeram alguns escravos do norte de Angola para o Caribe.Fonte:
por David Eltis (Emory University)

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