quinta-feira, 2 de julho de 2020

As escritoras brasileiras da virada dos séculos XIX e XX que foram esquecidas.

RIO - Júlia Lopes de Almeida publicou, entre 1909 e 1912, a coluna semanal “Dois dedos de prosa” no influente jornal carioca “O Paiz”. Na época, ela já tinha lançado os romances “Memórias de Martha”, de 1888, e sua obra mais importante, “A falência”, em 1901. No final do século XIX, fez parte do grupo de intelectuais que fundou a Academia Brasileira de Letras (ABL), em julho de 1897. Apesar de seu nome constar na lista publicada pelo futuro acadêmico Lúcio Mendonça em “O Estado de S. Paulo”, seis meses antes da fundação da casa, ela foi preterida por ser mulher, e sua vaga ficou com seu marido, o poeta Filinto de Almeida. Seu nome foi, assim, apagado da história da literatura brasileira, junto aos de outras importantes escritoras do final do século XIX e o início do XX.
Aos poucos, mulheres como Júlia (1862-1934), Albertina Bertha (1880-1953) e Narcisa Amália (1852-1924) vão sendo resgatadas do esquecimento a que foram relegadas. Júlia será tema da conferência do escritor Luiz Ruffato, “Todos contra Júlia!”, na próxima terça-feira, às 17h30m, na ABL, na abertura do ciclo “Cadeira 41”, sobre grandes autores ausentes da Casa de Machado de Assis (leia abaixo). No fim deste mês, a Fundação Biblioteca Nacional (FBN) lança “Dois dedos de prosa: o cotidiano carioca por Júlia Lopes de Almeida”, na série Cadernos da Biblioteca Nacional, uma reunião de crônicas publicadas em “O Paiz” organizada por Angela di Stasio, Anna Faedrich e Marcus Venicio Ribeiro. Também neste mês será lançado “Nebulosas”, de Narcisa Amália, uma coedição da Editora Gradiva com a FBN. Os livros vêm se somar à reedição, em 2015, do romance “Exaltação” (Gradiva/FBN), de Albertina Bertha. Os dois últimos são organizados por Anna Faedrich.
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Ruffato ressalta que não se trata de valorizar Júlia pelo fato de ela ser mulher, mas sim pela sua qualidade literária. O escritor conta que descobriu a obra da autora na década de 1980, quando estudava em Juiz de Fora (MG). Encantado pelo romance “A falência”, que trata do surgimento da burguesia comercial brasileira no início da República, Ruffato iniciou uma busca por outros livros de Júlia e, na década de 1990, colaborou em reedições feitas pela Editora Mulheres, que fechou após a morte de sua fundadora, Zahidé Muzart.
— Júlia é uma autora magnífica. Não é nenhum favor resgatá-la. Ela é um caso absurdo de escritora que não está no cânone literário por puro machismo. Ela é muito superior à grande maioria dos autores de sua época. Os únicos que se equipararam naquele momento são Aluísio Azevedo e Lima Barreto — afirma Ruffato.
A escritora Albertina Bertha, autora do romance "Exaltação" e elogiada por Lima Barreto Foto: Reprodução/Fundação Biblioteca Nacional
A escritora Albertina Bertha, autora do romance "Exaltação" e elogiada por Lima Barreto Foto: Reprodução/Fundação Biblioteca Nacional
Anna Faedrich foi pesquisadora residente na Biblioteca Nacional, onde coordenou uma pesquisa sobre Júlia, Albertina e Narcisa. Para Anna, ao serem excluídas das obras de história da literatura brasileira, essas mulheres foram esquecidas. Ela lembra que o cânone do Romantismo brasileiro só tem homens, como Gonçalves Dias e José de Alencar, apesar da importância de autoras como Narcisa Amália, uma poeta que dialogou com as três gerações do movimento.
— Os professores não sabem da existência dessas escritoras. Mesmo na universidade, reproduz-se o cânone do Romantismo, onde se acredita que as mulheres não eram educadas, eram todas analfabetas. Mas a culpa não é do professor. Um grande passo é reescrever essa história da literatura e inserir essas autoras em diálogo com outros escritores — explica Anna. — Essas mulheres escreviam, publicavam, faziam conferências e dialogavam com os homens, e mesmo assim não temos notícias delas. Toda história da literatura é escrita a partir da anterior, reproduzindo um discurso excludente.
A ideia de reunir as crônicas de Júlia veio de Angela di Stasio, funcionária do setor de manuscritos da FBN e uma das organizadoras de “Dois dedos de prosa”. Angela destaca o olhar perspicaz da escritora para a cidade, a maneira como ela descreveu um período de grandes transformações no Rio de Janeiro, como a inauguração do Teatro Municipal e da própria Biblioteca Nacional. Ela aponta o reconhecimento que Júlia teve na época em que viveu:
— Ao começar a ler as crônicas de “O Paiz”, um jornal de grande circulação no Rio, me impressionei com as crônicas da Júlia. São de uma atualidade incrível. Ela trata da violência policial, dos problemas do governo, das greves. As crônicas estavam, em geral, na primeira página. Ela não teria esse espaço se não fosse brilhante.
As trajetórias de Júlia, Albertina e Narcisa se aproximam num ponto: as três tiveram educação bastante avançada para os padrões da época e foram apoiadas em casa. Albertina nasceu em uma família de boa situação econômica, já que era filha do Conselheiro Lafayette, jurista e político importante no Império. Além de romancista, teve formação erudita e estudou filosofia. Anna Faedrich conta que ela participou de ciclos de conferência no salão do “Jornal do Commercio”, nos quais era a única mulher e abordava a obra do alemão Friedrich Nietzsche. A autora também se correspondeu com Lima Barreto, que em um artigo na “Gazeta de Notícias” a definiu como “um dos mais perturbadores temperamentos literários que, de uns tempos a esta parte, têm aparecido entre nós”. A pesquisadora destaca ainda a ousadia temática de Albertina em “Exaltação”, ao tratar de um triângulo amoroso com final trágico.
A poeta Narcisa Amália, que se casou e se divorciou duas vezes; seus poemas foram elogiados por Machado de Assis, apesar de um comentário machista Foto: Reprodução/Fundação Biblioteca Nacional
A poeta Narcisa Amália, que se casou e se divorciou duas vezes; seus poemas foram elogiados por Machado de Assis, apesar de um comentário machista Foto: Reprodução/Fundação Biblioteca Nacional
— Esse romance mostra certa ousadia, principalmente temática, pois trabalha com um tabu, que é o adultério feminino. Albertina mostra já uma consciência dessa sociedade machista em que a personagem está inserida. Essa mulher do romance não é nada ingênua, mas muito consciente das pressões e opressões. Ela vai contra um casamento arranjado pela família, se posiciona contra a maternidade. A protagonista não quer ser mãe. Na escrita, a gente observa ainda alguns traços românticos, mas Albertina trabalha também com fluxo de consciência, com uma narrativa de introspecção — explica Anna, que estudou a obra da autora na sua dissertação de mestrado.
ELOGIO DE MACHADO DE ASSIS
Já Narcisa Amália é a mais velha do trio. Nascida em São João da Barra (RJ), ela viveu por muito tempo em Resende e só veio para o Rio no fim da vida. Sua biografia revela uma mulher de vanguarda, pois se casou e se divorciou duas vezes, trabalhou como tradutora de francês e como jornalista. Anna aponta que ela também veio de um espaço privilegiado, pois seus pais eram professores. Ao comentar sobre os poemas reunidos em “Nebulosas”, na revista “Semana Ilustrada”, Machado de Assis demonstra certo preconceito: “Não sem receio abro um livro assinado por uma senhora”, começa Machado, para depois afirmar que “a leitura das Nebulosas causou-me excelente impressão”.

— Narcisa dialoga com a poesia social de Castro Alves, aborda a tortura e sofrimento do escravo. Ela também dialoga com o nacionalismo, trata de temas históricos típicos da primeira geração do romantismo. E ainda tem poemas de tom melancólico, bem “mal do século”, de que a morte é a única salvação — afirma Anna.
A esperança dos organizadores e pesquisadores é que, de volta às prateleiras das livrarias, Júlia, Albertina e Narcisa sejam mais lidas, estudadas e recolocadas na história da literatura brasileira da qual foram excluídas.
Fonte:O Globo Cultura.

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