sábado, 12 de outubro de 2019

A ANIMÁLIA DEGENERADA E MONSTRUOSA DO NOVO MUNDO - por 12 de outubro de 1492 - Chegada de Colombo na Ilha de Guanaani, que foi batizada de San Salvador, na América Central.

Nas descobertas de novos mundos, os relatos de viagem revigoram o maravilhoso, transferindo para as terras americanas muitos elementos do repertório mitológico europeu. Cristóvão Colombo escreve ter ouvido falar da existência de pessoas com focinho de cão, que devoravam os homens e decapitavam todos aqueles que capturavam, bebendo seu sangue e cortando-lhes os órgãos genitais.
O chamado Novo Mundo foi visto como uma extensa e última terra pós-diluviana, espécie de reminiscência pútrida, úmida e frígida. Outras vezes, tratava-se de uma região da qual o diabo se apoderou e para a qual atraiu hordas de selvagens.
Em escritos que datam de meados do século XVIII, esse continente antagônico, cheio de extremos, pantanoso e hostil – mas também ora desértico e altíssimo –, apresentava, como “animais melancólicos”, os seus homens imberbes e glabros em todas as partes do corpo, com porte menor do que o dos europeus, menos fortes, com menor ardor pelas mulheres, produtores de leite nas mamas, menos sensíveis, com pequenos órgãos reprodutores, mais crédulos e mais covardes, capazes de – como quaisquer outras bestas daquelas terras infelizes – expressar indocilidade e languidez, quando não eram praticantes do canibalismo.
Lactíferos e impúberes, não havia mesmo do que se vangloriar o homem americano. Em oposição aos europeus, geralmente ursinos e pilosos, os indígenas tinham uma alegada pouca masculinidade, que seria semelhante à dos lisos eunucos e à dos homens tonsurados.
E, no ambiente em que viviam – ambiente este de onde diziam ter se engendrado a sífilis que se disseminou pela Europa –, proliferavam animais que eram, inicialmente, aproximados aos do Velho Mundo.
As criaturas americanas ficavam, entretanto, em grande desvantagem, causada pelos preconceitos da época: para os viajantes e colonizadores, não havia na América os portentosos mamíferos africanos e os elegantes animais domésticos da Europa, mas, sim, uma proficuidade de animalejos de sangue frio, gigantescas serpentes, anfíbios de todas as ordens e insetos monstruosos, todos eles habitantes do clima chuvoso.
Dizia-se que tais seres germinavam do barro, quase por geração espontânea – uma das teses divulgadas naqueles idos e que só foi definitivamente jogada por terra por Pasteur em suas pesquisas ligadas à fermentação. Assim como Santo Agostinho havia afirmado que as rãs nasciam da terra, herança do pensamento de Aristóteles e de Plínio, na América os sapos eram os filhos do chão podre, no seio do qual aquelas “criaturas malvadinhas” se reproduziam rapidamente, em espantosa prolificidade.
Os estudiosos daqueles idos faziam a generalização de tudo o que fosse específico – e todo charco se tornava justificativa para pântanos sem fim, assim como cada pequeno mamífero era uma explicação para a inferioridade dos demais animais americanos (a mesma crítica era válida para os animais da Polinésia no século XVIII).
Nesse raciocínio, o puma era considerado um leão menor, sem juba, mais fraco e mais covarde; a anta era um elefantúsculo; a lhama, um camelo mirrado; a alpaca, um camelo ainda menor. Até os animais comuns ao Velho e ao Novo Mundo eram considerados menores na América, como lobos, raposas, cervos, alces e cabritos montanheses.
Como se não bastasse, a distância e o insulamento da América em relação ao restante do mundo conhecido faziam com que religiosos questionassem a situação da fauna daquele continente no momento em que a Arca de Noé fora preenchida pelos bichos. O mais proeminente destes homens era o padre José de Acosta (1540-1600), para quem os animais do Novo Mundo, caso tivessem de fato estado na Arca, deveriam, mediante a lógica da teologia, ter continuado no Velho Mundo ao saírem dela.
Ele se apoiava em Santo Agostinho, que dizia que os animais habitantes das ilhas teriam diversas origens: os anfíbios nasceriam da própria terra, os domésticos poderiam ter sido trazidos por barcos, mas os selvagens e nocivos – dada a distância entre certas ilhas e um continente – poderiam ter sido encaminhados pelos anjos de Deus.
O jesuíta missionário Bernabé Cobo (1582-1657) também compartilhava desta crença: ele acreditava que os anjos levaram os animais mais longínquos para o zoológico flutuante de Noé e, baixadas as águas do dilúvio, foram devolvidos a seus locais de origem.
O que veio a amenizar essas angústias teológicas foi a tese de um trânsito terrestre via estreito de Behring, supondo uma anterior ligação de terra, a qual não mais existia; tese esta que ajudou a derrubar as controversas teorias pré-adâmicas que punham em xeque a cronologia da Bíblia.
Como os pesquisadores se utilizavam também dos mesmos nomes para descrever animais diferentes dos dois mundos – uma atitude nada científica difundida pelos primeiros conquistadores –, as confusões ficavam reforçadas: o jaguar e a onça eram tigres; o puma era um leão; a alpaca era uma ovelha.
Em parte, tornava-se inevitável aos europeus fazer comparações usando referenciais do mundo que conheciam, da mesma forma que os romanos antigos chegaram a chamar o leão africano de urso, o avestruz de pássaro e o elefante de boi lucano. E muitas inteligências do período iluminista embarcaram em concepções descabidas.
Para Voltaire, por exemplo, os porcos do México tinham o umbigo nas costas, os carneiros eram vagarosos, e os leões, insignificantes, calvos e sem juba. O puma era quase um estranho antepassado do Dragão Encantado e do sentimental Ferdinando, o Touro.
Havia pelo continente, em vez de tamanduás, “ursos formicários” de pequeno porte, enquanto “pequenos javalis” era o termo usado para se referir aos porcos selvagens. Os cervos eram não mais do que cabritos reduzidos, e os porcos-espinhos também não recebiam um tratamento entusiasmado.
A danta (anta, ourignac ou “alce”) seria mesmo um elefante que não tinha dado certo. E ficou bem conhecida, naquela época, a informação de que os cães da América sequer tinham força para latir. Toda a animália da região do Orinoco, por exemplo, era descrita como uma fauna de aspecto mesquinho...
Os pássaros também não ficaram fora das numerosas críticas contra a avifauna do Novo Mundo. Em geral, reclamava-se de sua incompetência para o canto, da insistência de espécies diminutas – como o caso do colibri –, de aves iridescentes e coloridíssimas, mas praticamente mudas, e da presença de “rouxinóis” roucos e estridentes.
Curiosamente, dois pássaros praticamente míticos, posto que presentes em várias lendas da humanidade, mas com os quais muitos povos nem sequer mantiveram contato direto, eram presentes no pensamento que se consolidava no continente americano: o rouxinol e a cotovia.
O médico e escritor irlandês Oliver Goldsmith (1728/30-1774), que nada sabia sobre a face mais ocidental do mundo e pegou carona remotamente nas pseudo-teses buffonianas (* veja ao final do texto: "Conde de Buffon"), ajudou a espalhar fábulas sobre a estranheza do continente americano, presentes como curiosidades nos oito volumes de seu "History of the Earth and animated nature", de 1774, nos quais descrevia, por exemplo, uma Geórgia infestada de escorpiões, morcegos, serpentes, tigres e índios ferozes; e ainda havia na América, para ele, gigantes patagônicos; símios que davam sermões; rouxinóis que conversavam; um cuco brasileiro que produzia um som horrível; o imitador mocking-bird; as andorinhas que se escondiam no oco das árvores ou mergulhavam em bandos em lagos de águas profundas para lá passarem o inverno.
Uma grande atração para o pensamento da época eram mesmo os supostos gigantes da região da Patagônia, no sul do continente, mais especificamente na Terra do Fogo, que ora eram descritos como seres idiotas e imbecis, ora como dotados de inteligência notável. Além da influência de Buffon, outro clássico enciclopedista que ajudou a propagar ideias errôneas foi o enciclopedista holandês Cornelius Franciscus De Pauw (1739-1799), que ressaltava a natureza fraca e corrompida da América, na qual os caimãs e crocodilos não tinham o furor dos seus pares africanos.
Dentre os absurdos que escreveu, menciono a carne de iguana como provocadora da sífilis (o “mal-francês”), e a existência de rãs que eram capazes de mugir como bezerros. Ele relatou também que, dos numerosos pântanos americanos, saltou uma casta de rãs que chamaram índios, espécie intermediária entre os homens e os orangotangos.
John Hawkins (1719-1789), para quem, no Novo Mundo, tudo era “degenerado ou monstruoso”, asseverava a existência de leões na Flórida com o seguinte belo raciocínio, entre mitológico e heráldico:
"os habitantes da Flórida usam colares de chifres de unicórnio; donde existem muitos unicórnios na Flórida; e donde deve haver leões e tigres, leões especialmente, se é verdade o que dizem da inimizade entre eles e os unicórnios, pois não há besta sem o seu inimigo, de tal modo que onde se encontra um, o outro não deve estar ausente”.
Gerbi cita um certo Schlegel que falava de gatos-tigres, de camelos pigmeus, de leões calvos e bastardos, e o próprio Shopenhauer fazia comparações entre a anta e o elefante, o puma e o leão, o jaguar e o tigre, a lhama e o camelo, e o mico com os símios. Junto a isso, os estudiosos diziam que os animais europeus não se aclimatavam bem na América, com exceção do porco, que alegavam ter proliferado no México.
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(*) CONDE DE BUFFON - Georges-Louis Leclerc (1707-1788), mais conhecido como Conde de Buffon, foi um dos intelectuais franceses mais proeminentes do século XVIII, ao lado de iluministas como Voltaire e Rousseau. Esse pensador desenvolveu teses, isto é, ideias baseadas em especulações e pesquisas, sobre a inferioridade e o caráter degenerado e débil (isto é, imperfeito e mal formado) dos animais e das pessoas que se desenvolveram fora do continente europeu. Buffon servia-se do nascimento dos saberes que formaram a biologia moderna para fundamentar as suas teses. Aos estudos da vida e da formação biológica dos seres, o conde de Buffon acrescentou o ponto de vista do eurocentrismo.
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FONTE: "Todos os Monstros da Terra: Bestiários do Cinema e da Literatura" - por Adriano Messias. - São Paulo: EDUC: FAPESP.
IMAGENS:
1 e 2. Monstros das Viagens de Sir John Mandeville - "Crônica de Nuremberg" (1493)
3. Demônio Marinho desenhado por Ambroise Paré, médico autodidata do século XVI.
4. Colombo acreditava que encontraria monstros pelo Novo Mundo - Essa xilogravura de 1544 por Sebastian Münster, matemático e geógrafo alemão, retrata, da esquerda para a direita, um "ciapod", um "ciclope", gêmeos siameses, uma "blemia" e uma "cynocephaly". Münster lecionava na Universidade de Heidelberg, e na Universidade de Basileia. Era muito conhecido por ser o autor do livro Cosmografia Universal, uma obra em quatro volumes, só traduzida para latim em 1550. (Foto: The Conversation / Wikimedia Commons)
5. Criptídeo de Frei André Thévet (1502-1590), frade franciscano francês, explorador, cosmógrafo e escritor que viajou ao Brasil no século XVI, tendo escrito obras sobre os costumes da terra naquele tempo. Criptido ou criptídeo é um termo usado na criptozoologia para se referir a uma criatura cuja existência é sugerida mas para a qual não existem provas científicas para comprovar.
6. O Dodô, lâmina de "A History of the Earth and Animated Nature", por Oliver Goldsmith, publicado em London, 1816 reprodução por Jacques de Seve. (nome científico: Raphus cucullatus) é uma espécie extinta de ave da família dos pombos que era endêmica de Maurício, uma ilha no Oceano Índico. O Dodô é um dos primeiros exemplos de espécie animal totalmente extinta pela espécie humana. Ver “The Dodo in the Caucus Race”, por Stephen Jay Gould, em Natural History (nov 1996). A título de curiosidade, o Dodô aparece em "Alice no País das Maravilhas", de Lewis Carroll. Nessa obra, o animal pretendia ser uma caricatura do próprio autor – diz-se que sua gagueira o fazia pronunciar seu nome “Dodo-Dodgson”.
7. Sapos e Jacarés - Lâmina 51 do vol. 4 de "History of the Earth, and Animated Nature", por Oliver Goldsmith. Filadélfia: Impresso por Mathew Carey, 1795.

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