Em um final de tarde de 3 de dezembro de 1655, o padre português
Antônio Melo trancou sua igreja na cidade de Porto Calvo, à época na
Capitania de Pernambuco, hoje pertencente ao estado de Alagoas, e começa
a atravessar a rua de terra batida que o separava da praça principal da
pequena cidade. Mas, antes de chegar ao outro lado, parou, surpreendido
pelo ruído de cavalos.
Homens mal-encarados e armados de
flechas, espadas e pistolas apearam de seus cavalos. Junto com eles, uns
poucos negros acorrentados, com feridas abertas por todo o corpo.
Cabisbaixos, olhavam para o chão com olhos vazios. Já seus algozes
tinham a arrogância típica dos capitães do mato, os violentos caçadores
de escravos fugitivos. O padre Melo ficou ainda mais nervoso quando viu o
capitão Brás da Rocha Cardoso, herói da guerra contra os holandeses,
encerrada um ano antes, que caminhava em sua direção segurando um
embrulho de panos impregnado de todos os marrons da estrada. Sem beijar a
mão ou pedir bênçãos, o capitão disse, seco: “Essa cria é sua, padre.
Pegamos nos Palmares dos pretos e não temos serventia para ele. Faz dele
o que o senhor achar melhor”.
O “Palmares dos Pretos”, sobre o
qual Cardoso se referiu, era o Quilombo dos Palmares, local que ao
longo de 130 anos (1580-1710) foi abrigo para escravos fugidos dos
engenhos de cana nordestinos. O padre desembrulhou os panos empoeirados e
se compadeceu na mesma hora da criança, nascida havia poucos dias.
Tão
logo os capitães do mato e seus presos partiram, padre Antônio Melo
sentou-se ao pé da igreja, olhou a criança e decidiu: “Vai chamar-se
Francisco, é o santo do dia”.
O tempo passou e Francisco, já
adolescente, lia, escrevia, falava latim e português, interessava-se
pelas estratégias do jogo do xadrez, ajudava nas missas como coroinha
e,
nas palavras do próprio padre, demonstrava “engenho jamais imaginável
na raça negra e que bem poucas vezes conheci em brancos”. Era um garoto
brilhante, porém recluso. Vivia imerso nas letras e não tinha amigos,
além do padre.
Numa manhã de domingo de 1670, Antônio Melo
resolveu ir até o quartinho do garoto. Preocupara-se porque seu pupilo,
sempre pontual e dedicado, não apareceu para ajudar no serviço matinal.
Surpreso, constatou que Francisco havia partido com suas poucas posses. A
única coisa que deixou para trás foi um bilhete, escrito a carvão:
“Padre, agradeço por cada lição que o senhor me passou, mas meu sangue
clama: tenho de unir-me a meus malungos de Palmares. Francisco”. Pouco
depois, Zumbi se tornaria o líder absoluto do quilombo e seria o
comandante na sua derradeira batalha contra a Coroa Portuguesa.
“HISTÓRIA BONITINHA”
“É bonitinha essa história, né?”, ironiza o sociólogo e historiador Jean Marcel Carvalho França, coautor de Três Vezes Zumbi.
Escrito em parceria com o também historiador Ricardo Alexandre
Ferreira, o livro destrincha a construção da imagem de Zumbi ao longo de
três séculos. A ironia com que França trata a versão do coroinha
guerrilheiro é dirigida ao pesquisador gaúcho Décio Freitas, autor do
livro Palmares, a Guerra dos Escravos, no qual ele conta a pretensa
infância de Francisco-Zumbi.
“Freitas transgride uma regra do
meio historiográfico: se você apresenta uma notícia muito nova, tem de
trazer uma documentação coetânea, um indício que comprove as suas
acepções. Sobretudo, se elas são polêmicas, se elas escapam ao que você
tem de expectativa, de senso comum”, afirma França.
É
aí que mora o problema: Décio Freitas morreu em 2004, sem nunca
apresentar alguma prova dessa versão. Em seu livro, ele afirma que teve
acesso a extensa correspondência entre o religioso de Porto Calvo e
outro padre português, a quem ele contava a criação do garoto
quilombola. “Nesse caso específico, Décio Freitas teria que ter trazido
as tais cartas”, critica França.
A versão do Zumbi coroinha
teve adeptos, como o historiador Clóvis Moura, falecido um ano antes que
Freitas, que em seu Dicionário da Escravidão Negra no Brasil, publicado
pela Edusp, a editora da Universidade de São Paulo, publica a versão da
infância do menino Francisco na companhia do padre Antônio Melo, no
verbete que dedica a Zumbi. Também Jorge Landmann, que em 1998 escreveu o
romance histórico Troia Negra – A Saga dos Palmares, defende que as
cartas do Padre Melo existem e estão guardadas na Torre do Tombo, em
Lisboa, Portugal.
O historiador Carvalho França tem uma
explicação para o fato de essa versão de um Zumbi com educação formal e
inteligência acima da média ter conquistado adeptos, mesmo sem
apresentar evidências documentais consistentes. Segundo ele, na primeira
metade dos anos 1970, época da publicação de Palmares, a Guerra dos
Escravos, existia uma demanda por um herói romântico negro. E o
protagonista de Décio Freitas é exatamente isso. “Primeiro, ele é
naturalmente inteligente, esse é o traço romântico. É a primeira
característica do herói. A segunda característica é a ideia de que o
conhecimento ilumina. Ele vem, busca o conhecimento do branco e volta
mais esclarecido. Ele leva a chama da liberdade.” Em posse dessa luz
intelectual e moral, Zumbi comanda uma guerra dentro do quilombo contra o
próprio tio, Ganga
Zumba, depois que este assina um acordo de paz com os portugueses.
O
restante da história de Zumbi é mais consensual entre os historiadores.
Ele permaneceria na liderança do quilombo e resistiria a várias
investidas das expedições lançadas contra a comunidade de negros
libertos, na Serra da Barriga. Em 1694, o quilombo foi invadido por
forças lideradas pelo bandeirante paulista Domingos Jorge Velho. O
quilombo foi desarticulado e seus moradores presos e tornados escravos.
Zumbi foi ferido e desapareceu. Quase dois anos depois, acabou capturado
e morto. Sua cabeça foi cortada, salgada e exposta em praça pública em
Recife. Um selvagem recado para os escravos que sonhassem em rebelar-se
contra seus senhores.
Para saber um pouco mais
O ZUMBI DE ALÉM-MAR
EM ANGOLA, OUTRO FRANCISCO FOI CRIADO POR UM PADRE
O
músico, ativista e professor Antônio José do Espírito Santo nunca
gostou da ideia de que o sucesso do maior ícone negro da historiografia
brasileira fosse atribuído a uma concessão do branco. Resolveu, então,
fazer sua própria pesquisa. Voltou sobre os passos de Zumbi, num caminho
inverso, de Palmares à África. Espírito Santo não encontrou nenhuma
confirmação para a tese de que Zumbi algum dia foi criado por um padre
português ou que se chamou Francisco. Concluiu que a história do menino
Francisco que volta para liderar os negros é bastante improvável.
Mas
não impossível. Na verdade, houve de fato um menino nobre criado por um
padre. Espírito Santo topou com essa história no que chama de “acaso
fruto da pesquisa”: “Encontrei um manuscrito de um padre capuchinho,
(Marcellino) d’Atri é o sobrenome dele. Essa figura descreve a história
de um padre angolano que teria pegado o filho do rei dom Antonio I (o
nome cristianizado de Vita-a-Nkanga), que perde a batalha e é
decapitado”. O bebê Nkanga-a-Makaya é então levado para
Luanda,
junto com o corpo do pai, e cresce sob a tutela dos capuchinhos que o
batizam, curiosamente, de Francisco. Aos 20 anos, de volta ao Congo, ele
afirmou que não almejava o trono porque era “português demais”.
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