Você já se perguntou qual o principal motivo pelo qual as crianças vão à
escola? Não me refiro ao propósito dos pais de colocarem seus filhos na
escola, mas sim aquilo que faz com que as crianças e jovens tenham
interesse pela escola. Belinda Hopkins, especialista em abordagens
restaurativas em escolas do Reino Unido, ressalta que a razão principal
pela qual as crianças e jovens vão à escola é para se socializar e
encontrar com seus pares e sua rede de convívio. Basta conversarmos um
pouco com qualquer grupo de alunos para confirmarmos essa afirmação. Não
descartamos aqui o interesse pelo conteúdo pedagógico de muitos, porém,
em escala de interesses, os relacionamentos parecem assumir maior
importância.
Se pensarmos sob o ponto de vista da educação, a valorização do aprender
a conviver é igualmente importante, constituindo um dos quatro pilares
da educação para o século XXI segundo o Relatório Delors,
um dos mais importantes estudos promovidos pela Organização das Nações
Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) sobre a educação
do nosso século.
Se educadores e alunos reconhecem a fundamental importância da
convivência, vale refletir sobre “o que” e “como” as escolas têm
investido no desenvolvimento de ações promotoras do bom convívio.
Aparentemente, notamos que boa parte delas possui a crença de que os
relacionamentos saudáveis e respeitosos deveriam acontecer naturalmente,
sem que fosse necessário construí-los e cuidar para a garantia da
sustentabilidade dos mesmos.
É melhor prevenir
Pensando em ações promotoras de bom convívio, as práticas restaurativas
visam a construção de relacionamentos saudáveis, a manutenção dos
mesmos, bem como a reparação de relações danificadas. No entanto, nem
sempre foi assim, inicialmente tanto no Brasil como em outros países ao
redor do mundo, quando as práticas restaurativas começaram a ser
implementadas em algumas escolas, elas tinham um caráter reativo, ou
seja, eram aplicadas depois que conflitos ou situações de violência
haviam acontecido. Foi somente com o passar dos anos que os integrantes
da comunidade dessas escolas onde as práticas restaurativas haviam sido
implementadas perceberam a grande importância de se trabalhar de forma
proativa, ou seja, através de ações que promovam o senso de comunidade, a
colaboração e o respeito nas relações, minimizando a ocorrência de
conflitos e prevenindo a violência.
Essa característica reativa das práticas restaurativas, tem uma
explicação histórica. Elas derivam da justiça restaurativa definida em
2002 pelo Conselho Econômico e Social da ONU como qualquer processo no
qual a vítima e o ofensor, e quando apropriado, quaisquer outros
indivíduos envolvidos ou membros da comunidade afetada pela ofensa,
participam em conjunto e ativamente na resolução dos problemas nascidos
da ofensa, geralmente com ajuda de um facilitador. Os procedimentos
restaurativos podem incluir mediação, conferências e círculos”. Como se
pode notar nessa definição, a justiça restaurativa se dá nos casos onde
já ocorreu uma situação conflito e violência. O International Institute
of Restorative Practices nos ajuda a adotar um olhar mais amplo ao
afirmar que as práticas restaurativas devem incluir procedimentos
reativos e proativos.
No Brasil, as práticas de justiça restaurativas chegaram ao contexto
escolar pela primeira vez em 2005, pelo Projeto Piloto Justiça,
Educação, Comunidade: parcerias para a cidadania, implementado em São
Caetano do Sul, em São Paulo. De lá para cá, inúmeros Municípios no
Estado de São Paulo e outros Estados seguiram de forma crescente o
processo de implementação das práticas de justiça restaurativa em
escolas públicas.
Hoje, os integrantes das escolas que adotaram as práticas restaurativas
em seu cotidiano referem que o convívio é mais harmonioso e pacífico,
pautado no diálogo, respeito e colaboração. E quando os conflitos
acontecem, surgem os também os recursos dialógicos para lidar com tais
situações. É o que ilustra o depoimento de uma diretora: "A fala comum
dos alunos é 'agora sou ouvido'. Estamos realizando círculos nas
escolas. Notamos que a participação dos pais na escola que era de 30 a
40% passou para 80% e acreditamos que é decorrência da receptividade da
escola para com os mesmos. Acreditamos que as mudanças que ocorreram
foram: "ouvimos mais e não somos detentores da verdade". Os círculos
devolvem aos alunos a responsabilidade para resolver os problemas, pois
acreditamos que se eles têm capacidade para criá-los também terão
capacidade para resolvê-los. Hoje, ao chamar um pai para conversar não é
mais a escola que conta o que aconteceu, primeiro os pais contam o que
ouviram e quem conta aos pais o que aconteceu são os próprios filhos”1
Nas escolas, onde existe uma multiplicidade de relacionamentos
e boa parte deles são continuados no tempo, ou seja, em locais que
pessoas convivem cotidianamente, as ações proativas são imprescindíveis
tanto para a construção de uma comunidade harmoniosa e colaborativa,
como para o aprendizado e exercício de relacionamentos pautados no
diálogo, ferramentas que também beneficiarão as ações reativas de
resolução de situações conflitivas. Se o convívio está pautado no
diálogo, no respeito e na colaboração, nos momentos de conflito, essa
será a forma privilegiada para lidar com os mesmos.
Punir ou responsabilizar?
Em nossa cultura, a forma mais tradicional de lidarmos com as
transgressões, desentendimentos, conflitos e microviolências é através
da punição, pois há a crença de que a punição tem um caráter educativo,
ou seja, que ao receber uma punição a pessoa aprenderá o que fez de
“errado” e não agirá mais de forma inadequada. Acontece, porém, que a
punição não necessariamente leva os indivíduos a refletirem sobre o que
está na raiz de seus atos. Também não promove a reflexão sobre os danos
que causou às outras pessoas e tão pouco atende as necessidades
desatendidas daqueles envolvidos no conflito.
Sob uma ótica restaurativa o foco sempre está voltado para a responsabilização pelo ocorrido
e reparação de danos decorrentes de uma ação ofensiva. Segundo Kay
Pranis, especialista em justiça restaurativa, a responsabilização ocorre
quando a pessoa reconhece a autoria do ato, reconhece que esse ato foi
resultado de uma opção, entende o impacto desse ato ao outro (vítima,
família, comunidade) e compromete-se com as reparações necessárias.
Somente ao se reconhecer como autor do ato é possível comprometer-se com
a reparação. E somente com a realização de ações reparadoras é possível
reconquistar a confiança da comunidade e assim reintegrar-se nela,
prevenindo, assim, futuras reincidências.
A responsabilização também pode ser entendida sob um viés preventivo,
qual seja, todos somos responsáveis pela construção e sustentabilidade
de uma comunidade escolar cooperativa que cuida de seu bem-estar tanto
individual como coletivo. Em outras palavras, as práticas restaurativas
buscam desenvolver uma escola autônoma, capaz de construir suas próprias
soluções através de recursos próprios. Para o educador Paulo Freire, “a
pessoa, grupo ou Instituição empoderada é aquela que realiza, por si
mesma, as mudanças e ações que levam a evoluir e se fortalecer”.
A mudança de uma cultura punitiva para uma cultura restaurativa implica
em exercitar a responsabilização individual e coletiva. Ele deve ampliar
a autonomia dos integrantes da comunidade escolar na busca do
atendimento constante das suas necessidades.
Uma escola restaurativa cuida ativamente dos relacionamentos. Em razão
disso, tende a ser mais segura, oferecer melhores condições de
aprendizagem e utilizar o diálogo respeitoso como forma de construção,
manutenção e reparação do convívio e do bem-estar comum.
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