Por: Renato Drummond Tapioca Neto
Leopoldina de Habsburgo-Lorena é uma das personagens mais ilustres da história brasileira, principalmente pelo papel que desempenhou na emancipação política do país. Mais do que uma soberana consorte reinando em um país distante da Europa, ela promoveu um verdadeiro intercâmbio cultural envolvendo o continente europeu e o Brasil, sendo por isso um elo entre o que podemos chamar de velho e novo mundo. Contudo, apesar dos recentes esforços feitos para resgatar sua importância no cenário histórico atual, muitos são aqueles que desconhecem o envolvimento de Leopoldina no cenário político do Brasil e do mundo. Perto de outras princesas austríacas, ela permanece quase desconhecida, embora tenha sido uma mulher dotada de muitas capacidades intelectuais, acompanhadas de grandes sentimentos como o amor pela família, o carinho pela sua pátria de adoção e o respeito para com seus habitantes. Repensar a sua figura é, portanto, um exercício de reinterpretação historiográfica que pode oferecer novas bases para a compreensão dos eventos políticos ocorridos na primeira metade do século XIX.
A atuação política da primeira imperatriz do Brasil antecede sua fase como soberana consorte. Enquanto princesa real, Dona Leopoldina exercia forte influência sobre o marido, o príncipe regente e depois imperador, D. Pedro I, guiando-o em assuntos de Estado e mesmo o incentivando a e se posicionar a favor dos brasileiros e contra o desejo das Cortes Portuguesas. Aquele que ficaria conhecido como o “Dia do Fico” (9 de janeiro de 1822), foi tanto uma vitória dos brasileiros quanto de sua princesa. Já tendo dado muitas provas de sua inteligência e capacidade, Leopoldina era a pessoa ideal para substituir o marido na função de regente, e assim o fez. Em agosto de 1822, D. Pedro precisou viajar para São Paulo, com o propósito de apaziguar o ânimo dos paulistas, em ameaça de guerra civil por causa da oposição entre a facção dos Andrada e a do presidente Oeynhausen. Por causa do seu estado de gravidez, Leopoldina não pode acompanhar o marido. Em vez disso, permaneceu no Rio, governando em seu lugar. Essa, por sua vez, foi uma das maiores provas de confiança que o príncipe concedeu à sua esposa. O decreto que nomeava Leopoldina princesa regente na ausência de Pedro foi expedido no dia 13 de agosto. Citamos abaixo o documento na íntegra:
Tendo de ausentar-me desta capital por mais de uma semana para ir visitar a província de São Paulo, e cumprindo, a bem de seus habitantes, e da segurança e tranquilidade individual e pública, que o expediente dos negócios não padeça com esta minha ausência temporária, hei por bem que os meus ministros e secretários de estado continuem nos dias prescritos, e dentro do paço, como até agora, debaixo da presidência da princesa real do Reino Unido, minha muito amada e prezada esposa, no despacho de expediente ordinário das diversas secretarias do estado e repartições públicas que será expedido em meu nome, como si presente fora: e hei por bem outrossim que o meu Conselho de Estado possa continuar igualmente as sessões nos dias determinados ou quando preciso for, debaixo da presidência da mesma princesa real, a qual fica desde já autorizada para, com os referidos ministros e secretários do estado, tomar todas as medidas necessárias e urgentes ao bem e salvação do estado; e de tudo que me dará imediatamente parte para receber a minha aprovação e ratificação, pois espero que nada obstará que não seja conforme às leis existentes e aos sólidos interesses do estado (grifos meus).
O ministro e secretário de estado dos Negócios do Reino e Estrangeiros o tenham assim entendido e faça executar os despachos necessários.
Palácio do Rio de Janeiro, 13 de agosto de 1822 (apud OBERACKER, 1973, p. 268).
Como podemos observar a partir da leitura do documento, D. Pedro delegava à esposa poderes para presidir as “diversas secretarias do estado e repartições públicas” em nome do marido, devendo em seguida enviar seus despachos com os ministros e eventuais resoluções do Conselho de Estado para receber a aprovação e ratificação do príncipe. Ou seja: os poderes de Leopoldina como princesa regente não eram ilimitados, como muitos gostam de sugerir, já que suas deliberações só teriam validade se ratificadas por Pedro. Embora o príncipe mencionasse nesse decreto que se ausentaria por apenas alguns dias, esperava-se seu retorno para final de setembro ou começo de outubro. Carlos H. Oberacker Jr., considerado o principal biógrafo da imperatriz, afirma que “a D. Leopoldina não agradava governar, cumprindo esta tarefa exclusivamente por um sentimento de dever” (1973, p. 268). Assertiva essa que pode ser levada em conta, se considerarmos as cartas que a princesa escreveu para o marido e os amigos, durante seu tempo como regente, nas quais ela compara a tarefa de governar ao “maior dos sacrifícios”, que fazia pelo marido e pelo Brasil.
Contudo, pouco se procurou até aqui enxergar a atuação de Leopoldina como regente, dentro de um contexto de mulheres que exerceram o poder na casa d’Áustria. Desde o século XIII, as princesas austríacas governaram vastas possessões do império Habsburgo, sendo muito bem sucedidas nessa tarefa. A arquiduquesa Margarida (1480-1530), por exemplo, constantemente se queixava ao pai, o imperador Maximiliano, de como era difícil para uma mulher governar. No entanto, seu gênero não foi impecilho para que ela se tornasse uma das maiores estadistas do seu tempo, negociando diretamente com reis e firmando importantes tratados. Dois séculos depois, a imperatriz Maria Teresa, a Grande, bisavó de Dona Leopoldina, superava em poder os reis da Prússia e da França, mantendo-se em pé de igualdade com outra importante mulher, sua rival, a czarina Catarina II da Rússia. A avó de Leopoldina, Maria Carolina de Nápoles, por sua vez, ganhou entre os círculos políticos da Europa o apelido de “encrenqueira”, por interferir em assuntos de Estado e governar através do marido.
Com efeito, a Idade Moderna, desde Isabel I de Castela, presenciou o surgimento de muitas estadistas poderosas, que contribuíram para a desconstrução do imaginário clássico de que a mulher não tinha sido feita para reinar. Por seu sangue e educação, Dona Leopoldina era herdeira dessa extensa tradição de mulheres no poder. Diz-se que sua mãe também exercia forte influência sobre as decisões do imperador Francisco, assim como Leopoldina viria a exercer sobre as de Pedro. Ela possuía, além disso, bastante clareza sobre a situação do Brasil, conforme demonstrou em carta à irmã, Maria Luísa, ex-imperatriz dos Franceses e regente do ducado de Parma, em 1 de agosto de 1822: “aqui reina agora mais tranquilidade! O Brasil é grande e poderoso demais e, conhecendo sua força política, incapaz de ficar por mais tempo colônia da pequena mãe-pátria; por isso”, salienta a princesa, “custará ainda muitas lutas duras e sangrentas, como me parece e me permite minha pouca inteligência”. Apesar de sua modéstia, a sabedoria de Leopoldina excedia em muito àqueles que estavam ao seu redor, especialmente o príncipe, e encontrava em José Bonifácio um aliado à altura.
Superadas as primeiras dificuldades no posto de regente, Leopoldina ia aos poucos se acostumando com a tarefa de governar. Em algumas ocasiões, chegava a ficar seis horas seguidas reunida com os ministros, conforme relatou em carta ao marido, datada de 19 de agosto. No dia 23, ela recebeu uma embaixada de senhoras baianas, cuja província ainda estava sob o jugo das Cortes, que lhe entregaram uma mensagem assinada por 186 mulheres, felicitando-a por suas decisões em prol da causa brasileira. Nas palavras da própria Leopoldina, isso “prova que as mulheres tem mais ânimo e são mais aderentes à causa boa”.
As baianas abaixo assinadas, sensíveis ao muito que S. A. R. o senhor D. Pedro Príncipe Regente tem contribuído para a política e prosperidade de todo o Brasil sob os auspícios das bases constitucionais por todo ele juradas esforçando-se inteiramente por que se acabe o anárquico sistema de desunião que ia retalhar este reino em outros Estados independentes, quantas as suas províncias, caso se desse execução ao decreto do primeiro de outubro passado […]: E ponderando nós que neste heroica resolução teve V. A. R., anuindo ao que deliberava seu augusto e adorado esposo […] mostrando assim quanto é digna do trono para onde a vontade do Onipotente arbítrio dos impérios a tem chamado possuídas do maior respeito, depois de congratularmos aos nossos conterrâneos por termos entre nós tão preciosas e augustíssimas pessoas, vimos oferecer os nossos corações, únicas oblações que pôs a natureza ao alcance do nosso sexo, para que faça a posteridade o devido conceito das brasileira e, em particular das baianas (apud REZZUTTI, 2017, p. 229-230).
Essa foi uma das primeiras demonstrações de reconhecimento que o povo brasileiro tinha para com Dona Leopoldina, em agradecimento pela sua atuação junto ao príncipe pela causa da unidade nacional. Sobre esse encontro, Teles de Oliveira, representante diplomático em Viena, relatou ao pai de Leopoldina, imperador Francisco, que a princesa havia se comportado na ocisão como uma autêntica bisneta de Maria Teresa, diante do amor que lhe testemunhavam as senhoras baianas. Um dia depois de recepcionar a comitiva vinda da Bahia, Leopoldina não providenciou os festejos em comemoração ao aniversário da revolução portuguesa, no dia 24, como era feito nos anos anteriores: “não houve nem um beija-mão, nem outra manifestação de alegria”, relatou o barão de Mareschal.
No dia 28 de agosto, entrou na baía de Guanabara o navio português Três Corações, trazendo consigo notícias do que havia se passado em Lisboa até o dia de 3 de julho. De acordo com as informações, as Cortes mais uma vez insistiam no retorno do príncipe para Portugal, preparando uma frota poderosa e um exército de 7.200 homens para subjugar o Brasil. Soube-se ainda que D. Pedro fora bastante ofendido por deputados radicais portugueses, que se referiram a ele como “desgraçado e miserável rapazinho”, “mancebo ambicioso e alucinado” e “mancebo vazio de experiência”. É de se esperar que essas opiniões sobre o marido também tenham surtido forte impacto sobre Dona Leopoldina. Em 2 de setembro, data histórica para o nosso país, a princesa se reuniu às 11 horas da manhã com o Conselho de Estado no Paço da Boa Vista, para deliberar sobre a situação criada pelas notícias vindas de Portugal. Nesse reunião, registrada postumamente pelos pinceis da pintora Georgina de Albuquerque, José Bonifácio fez “uma exposição verbal do estado em que se achavam os negócios públicos, dizendo ter chegado a hora de acabar com aquele estado de contemporizar com os seus inimigos” (apud OBERACKER, 1973, p. 274).
Não obstante, evidenciou-se a tentativa das Cortes de devolver o Brasil à sua antiga posição de colônia, o que seria muito prejudicial para a nação. Portanto, não haveria outra solução a não romper de vez os laços com antiga metrópole. Leopoldina, que compartilhava das mesmas opiniões do ministro, aprovou com prazer a deliberação do Conselho. Bonifácio, que assistia a princesa em seu trabalho quase todos os dias, alegremente disse ao conselheiro Drummond: “meu amigo, ela deveria ser ele”. Ficava ao príncipe apenas a decisão de sancionar ou não a resolução da esposa. Antes que o despacho fosse enviado a D. Pedro em São Paulo, D. Leopoldina atrasou o correio para escrever uma carta ao marido, relatando tudo o que se passara e insistindo para que ele tomasse uma atitude. O documento original, porém, não mais existe. Seu texto foi supostamente preservado em um folheto raro de 1826, onde foi publicado pela primeira vez. A missiva dizia o seguinte:
Pedro, o Brasil está como um vulcão. Até no paço há revolucionários. Até oficiais das tropas são revolucionários. As Cortes Portuguesas ordenam vossa partida imediata, ameaçam-vos e humilham-vos. O Conselho de Estado aconselha-vos para ficar. Meu coração de mulher e de esposa prevê desgraças, se partirmos agora para Lisboa. Sabemos bem o que tem sofrido nossos pais. O rei e a rainha de Portugal não são mais reis, não governam mais, são governados pelo despotismo das Cortes que perseguem e humilham os soberanos a quem devem respeito. Chamberlain vos contará tudo o que sucede em Lisboa. O Brasil será em vossas mãos um grande país. O Brasil vos quer para seu monarca. Com o vosso apoio ou sem o vosso apoio ele fará a sua separação. O pomo está maduro, colhei-o já, senão apodrece. Ainda é tempo de ouvirdes o conselho de um sábio que conheceu todas as cortes da Europa, que, além de vosso ministro fiel, é o maior de vossos amigos. Ouvi o conselho de vosso ministro, se não quiserdes ouvir o de vossa amiga. Pedro, o momento é o mais importante de vossa vida. Já dissestes aqui o que ireis fazer em São Paulo. Fazei, pois. Tereis o apoio do Brasil inteiro e, contra a vontade do povo brasileiro, os soldados portugueses que aqui estão nada podem fazer. Leopoldina” (grifos meus) (apud OBERACKER, 1973, p. 281).
Apesar de o documento original não ter sobrevivido, o conteúdo dele é mencionado por muitos depoimentos daqueles que estiveram envolvidos na Sessão do Conselho, em 2 de setembro, especialmente a frase “o pomo está maduro, colhei-o já, senão apodrece”. Com isso, Leopoldina fazia alusão ao fato de que a independência era iminente. Se Pedro não tomasse nas mãos a tarefa de leva-la a cabo, outros o fariam. Não obstante, uma frase dessa carta lança um pouco mais de luz sobre a questão: “já dissestes aqui o que ireis fazer em São Paulo. Fazei, pois”, o que indica que havia um entendimento prévio entre o casal de príncipes antes da partida de Pedro para São Paulo, ou, do contrário, Leopoldina jamais tomaria uma decisão como essa, sem a certeza de que o marido a aprovaria. Após a leitura dessa carta, juntamente com outra de José Bonifácio, Pedro selou o destino político do país, ao proclamar sua emancipação de Portugal. Por outro lado, o nosso primeiro imperador dificilmente teria chegado a essa decisão sem os sábios conselhos de sua esposa. Existe uma mulher por trás da autonomia política do Brasil, que apesar de não ser nativa do país, lutou pela sua soberania e a felicidade de seu povo. O dia 2 de setembro é, assim, uma data muito importante para o nosso calendário cívico. Foi quando a filha dos césares soou pela primeira vez o brado da nossa independência.
Referências Bibliográficas:
CASSOTTI, Marsilio. A biografia íntima de Leopoldina: a imperatriz que conseguiu a independência do Brasil. Tradução de Sandra Martha Dolinsky. – São Paulo: Planeta, 2015.
GRISTWOOD, Sarah. Game of Queens: the women who made sixteenth-century Europe. Nova York: Basic Books, 2016.
KANN, Bettina; LIMA, Patrícia Souza. D. Leopoldina: cartas de uma imperatriz. – São Paulo: Estação Liberdade, 2006.
OBERACKER Jr., Carlos H. A imperatriz Leopoldina, sua vida e época: ensaio de uma biografia. – Rio de Janeiro: Conselho Federal de Cultura, 1973.
PRANTNER, Johanna. Imperatriz Leopoldina do Brasil. Tradução de Hanns Pellischek e Elena Dionê Borgli. – Petrópolis: Vozes, 1997.
REZZUTTI, Paulo. D. Leopoldina: a história não contada: a mulher que arquitetou a independência do Brasil. Rio de Janeiro: LeYa, 2017.
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