Há 50 anos, morria João Cândido Felisberto. Ele foi um dos líderes da
Revolta da Chibata, movimento que por quatro dias, em novembro de 1910,
alarmou o Rio de Janeiro, então capital da jovem República, e resultou
no fim dos castigos físicos na Marinha. Banido da corporação, pela qual
só foi anistiado em 2008, tornou-se ícone da luta por direitos do povo
negro brasileiro. No último 20 de novembro, Dia Nacional da Consciência
Negra, foi incluído no Livro dos Heróis do Estado do Rio, projeto dos
deputados André Ceciliano e Waldeck Carneiro (ambos do PT), aprovado
pela Alerj e sancionado por Wilson Witzel. Por contradições que a
política comporta, o reconhecimento foi formalizado pelo governador que é
ex-fuzileiro naval e patrocina uma política de segurança que não
livraria o Almirante Negro.
João Cândido nasceu no Rio Grande do
Sul em 1880, pouco mais de oito anos depois da Lei do Ventre Livre
(1871), que tornava livres os filhos de mulheres escravizadas nascidos a
partir da promulgação do texto. O pai era alforriado, a mãe, cativa.
Testemunhou na infância a brutalidade do sistema escravocrata;
acompanhou a Revolução Federalista gaúcha (1893-95) e a Revolta da
Armada no Rio (1891-94). Aos 14 anos entrou na Marinha de Guerra. Como
marinheiro, viu de perto a Revolução Acriana, contra a Bolívia
(1899-1903); esteve no navio que levou munição para a Guerra de Canudos
(1896-97); informou-se sobre a revolta da tripulação do navio russo
Potemkin (1904) contra maus-tratos.<
Esse ambiente moldou João
Cândido, conta o historiador Álvaro Nascimento, professor da UFRRJ, que
fez tese de doutorado e prepara uma biografia do personagem: “Ele era um
homem do seu tempo, um homem comum. Era apaixonado pela Marinha,
respeitava a hierarquia, mas tinha um senso de justiça forte”, resume.
Passou década e meia na corporação e nunca foi punido com castigo
físico; teve somente duas repreensões. Era disciplinado, mas começou a
refletir sobre as condições de trabalho, que, duas décadas depois da
Proclamação da República, ainda remetiam à escravidão. No Império,
marinheiros podiam ser castigados fisicamente com até cem chibatadas; na
República, o limite caiu para 25, mas não foi abolido.
O
movimento, conta Nascimento, tentara, sem sucesso, dialogar com
autoridades como o ex-presidente Nilo Peçanha. A Revolta da Chibata
eclodiu em 22 de novembro de 1910, depois que um marujo perdeu os
sentidos ao receber 250 chibatadas por agredir um oficial. Os
marinheiros eram predominantemente negros, os superiores, brancos.
Liderados por João Cândido, Francisco Dias Martins, André Avelino e
Manoel Gregório, os amotinados tomaram quatro navios na Baía de
Guanabara, apontaram canhões de curto, médio e longo alcance para a
capital e atiraram quatro vezes (três crianças do Morro do Castelo
morreram).
O protagonismo de João Cândido se deu porque foi ele
quem manobrou as embarcações e orientou os rebelados. Vem daí a alcunha
de Almirante Negro. “Ele determinou que todas as bebidas fossem lançadas
ao mar e todas as peças de valor fossem guardadas. Não queria os
rebelados tratados como ladrões, bêbados nem arruaceiros”, detalha o
professor. Em carta ao recém-empossado presidente Hermes da Fonseca, os
marinheiros reivindicavam o fim dos castigos físicos, melhores condições
de alimentação e trabalho, educação para os indisciplinados. Foram
anistiados quatro dias depois.
No mês seguinte, após nova rebelião
na Ilha das Cobras da qual não participara, João Cândido foi preso com
17 marinheiros. Dezesseis morreram na cela, intoxicados por cal. Ele
ficou encarcerado por dois anos. Ganhou liberdade após a irmandade
católica do Rosário dos Pretos bancar sua defesa, mas acabou expulso da
Marinha. Tentou trabalhar na Marinha Mercante, mas foi perseguido;
tornou-se vendedor no Mercado de Peixes da Praça XV.
A vida seguiu
atravessada por tragédias pessoais: a primeira mulher e uma das filhas
se suicidaram. Pobre, mudou-se para São João de Meriti com a segunda
companheira e filhos. O biógrafo de João Cândido conta que ele nunca
deixou de acompanhar a corporação que tentou melhorar, tampouco se
arrependeu do levante: “Ele dizia com orgulho: ‘eu parei o Brasil’”.
Saiu da Baixada Fluminense para morrer no Hospital Getúlio Vargas,
percurso que ainda hoje fazem tantos cidadãos desassistidos pelo sistema
de saúde. Nos anos 1970, em plena ditadura militar, foi homenageado por
João Bosco e Aldir Blanc com a canção “Mestre-sala dos mares”. Por
monumento, tem “as pedras pisadas do cais”. Nunca foi reconhecido como
herói de um Brasil, até hoje, tomado pela desigualdade, que faz do
punitivismo e da brutalidade solução.
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