sexta-feira, 6 de dezembro de 2019

João Cândido.

Há 50 anos, morria João Cândido Felisberto. Ele foi um dos líderes da Revolta da Chibata, movimento que por quatro dias, em novembro de 1910, alarmou o Rio de Janeiro, então capital da jovem República, e resultou no fim dos castigos físicos na Marinha. Banido da corporação, pela qual só foi anistiado em 2008, tornou-se ícone da luta por direitos do povo negro brasileiro. No último 20 de novembro, Dia Nacional da Consciência Negra, foi incluído no Livro dos Heróis do Estado do Rio, projeto dos deputados André Ceciliano e Waldeck Carneiro (ambos do PT), aprovado pela Alerj e sancionado por Wilson Witzel. Por contradições que a política comporta, o reconhecimento foi formalizado pelo governador que é ex-fuzileiro naval e patrocina uma política de segurança que não livraria o Almirante Negro.
João Cândido nasceu no Rio Grande do Sul em 1880, pouco mais de oito anos depois da Lei do Ventre Livre (1871), que tornava livres os filhos de mulheres escravizadas nascidos a partir da promulgação do texto. O pai era alforriado, a mãe, cativa. Testemunhou na infância a brutalidade do sistema escravocrata; acompanhou a Revolução Federalista gaúcha (1893-95) e a Revolta da Armada no Rio (1891-94). Aos 14 anos entrou na Marinha de Guerra. Como marinheiro, viu de perto a Revolução Acriana, contra a Bolívia (1899-1903); esteve no navio que levou munição para a Guerra de Canudos (1896-97); informou-se sobre a revolta da tripulação do navio russo Potemkin (1904) contra maus-tratos.<
Esse ambiente moldou João Cândido, conta o historiador Álvaro Nascimento, professor da UFRRJ, que fez tese de doutorado e prepara uma biografia do personagem: “Ele era um homem do seu tempo, um homem comum. Era apaixonado pela Marinha, respeitava a hierarquia, mas tinha um senso de justiça forte”, resume. Passou década e meia na corporação e nunca foi punido com castigo físico; teve somente duas repreensões. Era disciplinado, mas começou a refletir sobre as condições de trabalho, que, duas décadas depois da Proclamação da República, ainda remetiam à escravidão. No Império, marinheiros podiam ser castigados fisicamente com até cem chibatadas; na República, o limite caiu para 25, mas não foi abolido.
O movimento, conta Nascimento, tentara, sem sucesso, dialogar com autoridades como o ex-presidente Nilo Peçanha. A Revolta da Chibata eclodiu em 22 de novembro de 1910, depois que um marujo perdeu os sentidos ao receber 250 chibatadas por agredir um oficial. Os marinheiros eram predominantemente negros, os superiores, brancos. Liderados por João Cândido, Francisco Dias Martins, André Avelino e Manoel Gregório, os amotinados tomaram quatro navios na Baía de Guanabara, apontaram canhões de curto, médio e longo alcance para a capital e atiraram quatro vezes (três crianças do Morro do Castelo morreram).
O protagonismo de João Cândido se deu porque foi ele quem manobrou as embarcações e orientou os rebelados. Vem daí a alcunha de Almirante Negro. “Ele determinou que todas as bebidas fossem lançadas ao mar e todas as peças de valor fossem guardadas. Não queria os rebelados tratados como ladrões, bêbados nem arruaceiros”, detalha o professor. Em carta ao recém-empossado presidente Hermes da Fonseca, os marinheiros reivindicavam o fim dos castigos físicos, melhores condições de alimentação e trabalho, educação para os indisciplinados. Foram anistiados quatro dias depois.
No mês seguinte, após nova rebelião na Ilha das Cobras da qual não participara, João Cândido foi preso com 17 marinheiros. Dezesseis morreram na cela, intoxicados por cal. Ele ficou encarcerado por dois anos. Ganhou liberdade após a irmandade católica do Rosário dos Pretos bancar sua defesa, mas acabou expulso da Marinha. Tentou trabalhar na Marinha Mercante, mas foi perseguido; tornou-se vendedor no Mercado de Peixes da Praça XV.
A vida seguiu atravessada por tragédias pessoais: a primeira mulher e uma das filhas se suicidaram. Pobre, mudou-se para São João de Meriti com a segunda companheira e filhos. O biógrafo de João Cândido conta que ele nunca deixou de acompanhar a corporação que tentou melhorar, tampouco se arrependeu do levante: “Ele dizia com orgulho: ‘eu parei o Brasil’”. Saiu da Baixada Fluminense para morrer no Hospital Getúlio Vargas, percurso que ainda hoje fazem tantos cidadãos desassistidos pelo sistema de saúde. Nos anos 1970, em plena ditadura militar, foi homenageado por João Bosco e Aldir Blanc com a canção “Mestre-sala dos mares”. Por monumento, tem “as pedras pisadas do cais”. Nunca foi reconhecido como herói de um Brasil, até hoje, tomado pela desigualdade, que faz do punitivismo e da brutalidade solução.


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