O contexto histórico
No início do
século XVII, a Inglaterra se achava destroçada por intensas lutas
políticas e religiosas. Como já vimos nos artigos passados, a igreja
oficial e os dissidentes não conformistas disputavam pelo tipo de igreja
que devia consolidar-se no solo inglês. Ambos eram protestantes, mas
com enfoques radicalmente opostos, não quanto às suas doutrinas
essenciais, mas quanto à forma exterior da igreja. Os anglicanos se
agarravam à igreja legada pela tradição histórica, enquanto que os
dissidentes queriam uma igreja mais ajustada ao modelo do Novo
Testamento, até onde eles o entendiam. Tratava-se, portanto, de uma luta
por coisas importantes, embora exteriores.
Muito pouco
interessava, nesses dias, a experiência real e interior. A vida cristã
tinha chegado a ser não muito mais que uma profissão formal de certos
credos protestantes considerados ortodoxos. Tudo tinha sido reduzido à
confissão exterior de um conjunto de doutrinas corretas, sem importar o
seu verdadeiro impacto na vida de quem as professava. As pessoas se
consideravam «justificadas» por sua adesão a um credo ortodoxo formal, e
não por uma fé viva em Cristo morto e ressuscitado. Além disso, um
calvinismo rígido, cansativo e intelectualizado enchia os corações de
pessimismo, enfatizando grandemente a condição corrupta da natureza
humana e sua incapacidade de viver uma vida livre do poder do pecado.
Deste modo, justificavam-se em toda classe de vícios, e um relaxamento
moral generalizada entre os assim chamados cristãos. Na verdade, o que
ocorria é que muito poucos conheciam a Cristo por experiência.
Este lamentável
estado de coisas se refletia em ministros e clérigos incapazes de guiar
os homens que pastoreavam para um conhecimento vivo de Cristo, pois nem
mesmo eles o conheciam de verdade. Enquanto isso entretinham-se em
longos e acalorados debates teológicos, carentes de significação
espiritual. A sua ortodoxia era correta, mas tão fria, morta e impotente
como um cemitério. Entretanto, nesses dias de escasso conhecimento
espiritual, Deus ia usar um homem chamado de fora de todo esse mundo
religioso para começar a reverter esta situação. Seu nome era George
Fox.
Um homem enviado por Deus
Em sua
autobiografia, Fox diz que nasceu em Leicestershire, em Julho de 1624.
Seu pai, um tecedor de ofício, e sua mãe, que tinha mártires entre os
seus antepassados, eram considerados como pessoas retas e cristãs. Desde
menino, George mostrou uma seriedade pouco comum. Quando tinha 19 anos
foi convidado para uma festa com outros parentes ‘cristãos’, onde viu
como alguns bebiam em excesso. Aborrecido ao perceber tanta diferença
entre palavras e atos, abandonou o lugar, e a partir dali se entregou a
uma longa busca espiritual. Viajou por diversos lugares da Inglaterra e
conversou com ministros de todas as tendências de sua época, procurando
respostas para as suas profundas inquietações espirituais. Nesse tempo
se sentia envolvido por densas e terríveis trevas, mas ninguém conseguiu
lhe ajudar. Isto o conduziu a um estado de desespero quase total. Tudo
ao seu redor parecia morto e impotente. Os cristãos de seus dias
careciam de verdadeira realidade espiritual.
Um dia, enquanto
caminhava em direção à cidade de Coventry, sentiu que Deus falava ao seu
coração de maneira direta, abrindo o seu entendimento. Então
compreendeu subitamente que todos, sejam católicos ou protestantes, se
tiverem passado da morte para a vida, são verdadeiros crentes, enquanto
que quem não tem passado por essa experiência, não são, embora se
denominem a si mesmos crentes.
Essa experiência
de ‘abertura’, como ele a chamou, aonde a verdade chegava, já formada,
ao seu coração, repetir-se-ia nos dias seguintes, e ao longo de toda a
sua vida. Da mesma maneira, entendeu claramente que por ter estudado em
Oxford ou em Cambridge não qualificava a um homem para ser ministro de
Cristo – apesar de que isto ia contra o ponto de vista usualmente
aceito, inclusive por ele mesmo até esse momento.
Depois de outra
dessas ‘aberturas’, compreendeu que Deus não habita em templos feitos
por mãos de homens, mas no coração das pessoas. Que o seu povo é o seu
templo e que ele habita neles. Não obstante, uma experiência ainda mais
profunda estava por chegar. Em sua autobiografia nos conta que quando
todas as suas esperanças em ministros e pregadores, e ainda em todo
homem, esgotaram-se, de modo que não ficava nada exterior em que
apoiar-se e nada mais que ele pudesse fazer, escutou uma voz que lhe
dizia, «Há um, Cristo Jesus, que pode responder a sua condição». Então
–nos diz– o seu coração saltou de gozo. Ninguém mais que Cristo podia
responder ao seu coração entrevado, e isto, para que só Cristo tivesse a
glória. Todos, tal como ele, estão cegados debaixo do pecado, e só
Cristo pode lhes iluminar, concedendo a sua graça e poder. Só ele tem a
preeminência.
Isto foi para
ele, enfatiza Fox, um conhecimento experimental. A partir desse dia
todos os seus sofrimentos, trevas e tentações se dissiparam. Viu que
Cristo era poderoso para vencer nele todas essas coisas e ainda mais.
Agora tinha a certeza de ser guardado por Cristo do poder do pecado,
mediante o Espírito Santo. Todas as suas necessidades estavam
satisfeitas em Cristo. Depois deste acontecimento se sentiu compelido a
anunciar a todos os homens aquilo que tinha descoberto por experiência
própria, e começou um aguerrido ministério itinerante. Este foi o começo
das «Sociedades de Amigos», a quem seus caluniadores apelidaram
«Quaker».
Seus ensinos e conduta
Os Quaker, a
partir de Fox e seus ensinos, rejeitavam todos os aspectos exteriores da
religião dos seus dias, considerando-os como um formalismo vazio. Ao
contrário, enfatizavam o conhecimento e as realidades espirituais
interiores como o único realmente válido. Em dias de ortodoxia fria e
exterior, fizeram um ousado chamado para «conhecer a verdade no íntimo».
A luz interior, diziam, que mora no coração de cada crente, ensina-nos
todas as coisas. Não é que menosprezassem a Bíblia, como pretendiam seus
adversários, mas enfatizavam a absoluta necessidade de que o Espírito
Santo a revele no íntimo. Além dessa revelação interior, as doutrinas, e
ainda a própria Bíblia –diziam– carecem de significado. Tudo deve ser
avaliado pela experiência interior.
Por isso,
consideravam à igreja como uma entidade exclusivamente espiritual,
conformada por todos aqueles que nasceram de novo; e desprezavam todos
seus aspectos exteriores como carentes de significado, inclusive o
batismo e a ceia do Senhor, como parte de sua reação contra o formalismo
excessivo de seu tempo. Para eles, estes sacramentos eram interiores e
espirituais. Além disso, rejeitavam o ministério oficial e profissional,
afirmando que o verdadeiro ministério era concedido pelo Espírito, além
dos títulos e ordenações exteriores. Rejeitavam, por outro lado, os
templos, que em seu tempo eram considerados ‘lugares santos’,
intitulando-os de ‘casas campanários’. Para eles, o verdadeiro templo
eram os crentes, em quem Deus habitava em Espírito.
Quanto à vida
cristã prática negava-se a pronunciar juramentos e detestavam todo tipo
de simulação ou hipocrisia social. De fato, consideravam a todos os
homens como iguais em dignidade, sem importar a sua origem ou condição
social. Negavam-se a prestar ‘honras sociais’ a nobres ou outros títulos
sociais, pois sentiam uma aversão profunda a toda forma de servilismo
(não obstante, reconheciam os títulos de rei ou juiz). Jamais tiravam o
chapéu diante de um poderoso ou nobre em sinal de respeito, o qual levou
a muitos deles para a prisão.
Eram, além disso,
pacifistas convencidos e militantes, que se negavam a usar as armas e
preveniam a todos contra o uso delas, ainda a risco de serem
considerados como traidores. Todas as guerras sem exceção, julgavam os
irmãos, procediam das paixões humanas, de acordo com o texto de Tiago.
Também se opunham ardentemente à escravidão, pois para eles todos os
homens eram iguais perante Deus. Em suma, de acordo aos Quaker, todo
verdadeiro cristão devia mostrar uma vida consagrada e transformada pela
vida interior do Espírito.
Por outro lado,
os irmãos criam firmemente na vigência de carismas espirituais. George
Fox relata numerosos incidentes de cura, libertações de demônios,
profecias e palavras de conhecimento sobrenatural em sua própria
experiência. Não obstante, eram normalmente moderados e sérios no
emprego dos mesmos, evitando qualquer excesso emocional. É interessante
notar que uns cinqüenta anos mais tarde, durante o avivamento metodista,
muitos quakeres sentiram saudades ante as manifestações emocionais que
observavam nas reuniões de Whitefield e Wesley. Toda essa emotividade
resultava alheia aos seus sentimentos, mais acostumados à quietude.
Sua história e sofrimentos
Tratava-se de um
verdadeiro protesto contra a religião formal e vazia dos seus dias.
Muitos se sentiram atraídos por seus ensinos e por volta de 1652 se
reuniram em Preston Patrick, ao norte da Inglaterra, a primeira
«Sociedade de Amigos». Logo apareceram muitas mais em todo o país.
Embora os Quaker enfatizassem a importância da voz interior do Espírito,
as suas reuniões estavam muito longe de parecer-se com os cultos
pentecostais posteriores. Congregavam-se quietamente, formando círculo
ou dois grupos de fileiras opostas, sem nenhum tipo de ministro ou
direção formal, e esperavam em silêncio até que um deles, ou talvez
vários, recebesse uma palavra para compartilhar com seus irmãos. Era
permitido a todos falar, tanto homens como mulheres, se isso fosse feito
sob a direção do Espírito. Os Quaker criam e praticavam o sacerdócio de
todos os crentes, apoiados em que todos tinham a Luz interior para os
guiar.
As circunstâncias
da história inglesa explicam a terrível reação que deveriam suportar.
Os dissidentes não conformistas ascenderam momentaneamente ao poder
durante a regência de Oliver Cromwell. Os bispos anglicanos foram
exilados e por um tempo se gozou da liberdade de culto. Isto foi
favorável para Fox e as sociedades de amigos, que se estenderam por toda
a Inglaterra. Não obstante, o estilo confrontacional de alguns deles
atraiu para eles vários problemas, inclusive com o governo relativamente
tolerante de Cromwell. Acostumavam interromper as reuniões nos templos
oficiais, normalmente depois do sermão, para expor os seus ensinos,
provocando às vezes desordens e ataques violentos da multidão (embora
nunca respondessem às agressões de seus atacantes). Em torno de 3.200
deles sofreram a prisão durante esse período, debaixo de terríveis
condições e abusos, não só por interromper cultos oficiais, mas também
por supostas blasfêmias, não tirar o chapéu diante de pessoas de alta
classe social, e negar-se a pegar nas armas. Fox mesmo esteve oito vezes
na prisão ao longo de sua vida.
Tanto homens como
mulheres enfrentaram com admirável valor a perseguição, os golpes e as
humilhações a que eram submetidos pelo povo enfurecido. Não retrocediam,
nem se escondiam diante dos seus perseguidores. De fato, não faziam
nada para evitar serem capturados e postos na prisão. Apesar de tudo, a
Sociedade de Amigos cresceu e inclusive enviou missionários às reservas
indígenas na América do Norte, Holanda e Alemanha.
Entretanto, o
sofrimento mais intenso iria vir depois da morte de Cromwell. A
monarquia foi restaurada sob Tiago II, e isto trouxe certo alívio aos
irmãos por um breve tempo. Mas, mais adiante, com a publicação da «Ata
de Uniformidade», em que se obrigava a todos os súditos do reino a
conformar-se à restaurada «Igreja da Inglaterra», sob ameaça de penas
severas, milhares sofreram a prisão e a perda de todos os seus bens
materiais, pois se negaram a aceitar o decreto e continuaram reunindo-se
abertamente, desafiando a proibição – a diferença dos grupos não
conformistas, que continuaram adiante em segredo. Em torno de 400 irmãos
morreram na prisão durante aqueles anos.
Por causa dos
enormes sofrimentos que deveriam enfrentar, tal como fizeram os
Puritanos, alguns começaram a migrar para a América. William Penn, filho
de um famoso almirante inglês, tinha abraçado as idéias dos Quaker em
1666, e chegou a converter-se em um dos seus maiores pregadores e
defensores. Este decidiu achar na América do Norte um lar livre para os
seus, e começou ajudando a enviar uns oitocentos deles para Nova Jersey
em 1667. Mais adiante, obteve como pagamento de uma dívida do Rei Carlos
II a concessão de um grande território no Novo Mundo, que foi mais
tarde conhecido como Pensilvânia, em honra a seu nome. Ali foi fundada
Filadélfia, a primeira cidade Quaker da América. Um novo capítulo se
abriu assim para a história dos Quaker refugiados.
Finalmente, em
1689, ditou-se na Inglaterra uma ata de tolerância, e as sociedades de
amigos puderam ao fim gozar de liberdade de culto. George Fox morreu
pouco tempo depois, em 1691, depois de um incansável e sofrido
ministério itinerante.
Legado espiritual
Embora os Quaker
fossem muito longe em sua rejeição a todas as formas exteriores da
igreja, inclusive aquelas ensinadas no Novo Testamento (com o qual se
torna difícil concordar), o seu valor radica em que por seu intermédio
foi restaurada a importância da morada interior do Espírito Santo, como
divino Condutor e Mestre de todos os crentes.
Sua convicção de
que a Escritura, as doutrinas corretas e as práticas eclesiásticas não
significam muito além da vida que ministra o Espírito, continuam
vigentes até hoje. Porque o conhecimento da verdade no íntimo, por
revelação do Espírito, é vital para a vida dos crentes, tão individual
como corporativamente. As coisas exteriores devem sempre ser a expressão
das realidades exteriores e espirituais. De outra maneira, tornam-se
vazias e mortas. Na Inglaterra de seus dias esse era o caso e por isso
reagiram com tanta ousadia.
Era necessária
uma restauração, e para isso deveriam começar com o essencial. Tornou-se
fundamental redescobrir a Cristo de uma maneira experimental. Só assim o
pecado, a religiosidade e a morte que imperavam em seu tempo podiam ser
revertidos. Por isso, os Quaker levantaram o estandarte do testemunho
para recordar que Cristo não habita nas doutrinas corretas, nos templos e
nos ritos exteriores, mas no coração dos crentes, ministrando-lhes a
sua vida, poder e direção para vencer em todas as coisas. E, se
inclinaram demasiadamente para um extremo da verdade, se deve,
sobretudo, a que o Cristianismo de seus dias se inclinou mortalmente
para o extremo contrário.
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