terça-feira, 17 de dezembro de 2019

A antropofagia.

Em que pese a diversidade étnica dos vários grupos indígenas que habitavam o território da América portuguesa no momento do contato com os europeus, é possível identificar, para além dos costumes funerários “mais comuns/corriqueiros”, a prática antropofágica. Quando da chegada dos europeus, os índios que habitavam o Rio de Janeiro viviam “destruindo-se e comendo-se” uns aos outros, tornando a antropofagia uma das principais marcas das atitudes nativas diante da morte as quais se fizeram notar com grande força nos relatos deixados por aqueles que travaram contato com os diversos grupos indígenas na região que seria conquistada.
A morte e os mortos estavam por trás das guerras que os diversos grupos realizavam entre si e uns com os outros, na medida em que, mais do que conquistar territórios, riquezas ou povos, elas objetivavam principalmente vingar os antepassados mortos pelos inimigos. A vingança consistia, assim, no elemento fundamental destas sociedades e tanto os mortos pretéritos como os que ainda estariam por vir representavam o elo entre passado, presente e futuro. O ritual antropofágico constituía-se em cerimônia essencial, motivadora e ponto culminante das expedições guerreiras, sendo através dele que se vingavam os antepassados mortos e buscava-se fortalecer os membros do grupo que comia o inimigo. A religião tupi-guarani girava em torno da crença em outra vida, na qual a morte, a dor e a miséria encontravam-se banidas: a terra sem mal. Uma terra partilhada pelos deuses e pelos antepassados, onde residiria a felicidade e cujo ingresso se daria através da morte. Mas o acesso a este “lugar” não era livre, visto depender do desempenho tido em vida. Aos guerreiros que tivessem aprisionado e matado muitos inimigos ou às mulheres que se dedicassem ao preparo da carne dos prisioneiros que seriam mortos e à sua ingestão, era permitido o ingresso naquele “além” desejado, passando a conviver com os antepassados e os deuses. Aos considerados covardes e aos que nunca mataram nenhum inimigo, o destino era a mortalidade da alma, o apodrecimento do corpo, a necrofagia por um espírito maligno. Acreditava-se que, caso não encontrassem alimentos sobre a sepultura, estes espíritos devorariam o defunto e atormentariam sua “alma”. Tanto que, para aplacar a sua presença nas proximidades das aldeias, mantinha-se um fogo aceso, oferendas eram feitas e objetos especialmente confeccionados eram mantidos na entrada das aldeias, a exemplo dos maracás – que, para os tupinambás, eram um receptáculo dos espíritos dos antepassados, através dos quais estes últimos enviavam mensagens aos vivos, tornando-se objetos cultuados, enquanto materialização do espírito dos ancestrais.
Para saber Mais: KOK, Glória. Os vivos e os mortos na América portuguesa: da antropofagia à água do batismo. Campinas: Ed. da Unicamp, 2001.
Imagem: Antropofagia no Brasil em 1557, segundo a descrição de Hans Staden.

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