Nas descobertas de novos mundos, os relatos de viagem revigoram o
maravilhoso, transferindo para as terras americanas muitos elementos do
repertório mitológico europeu. Cristóvão Colombo escreve ter ouvido
falar da existência de pessoas com focinho de cão, que devoravam os
homens e decapitavam todos aqueles que capturavam, bebendo seu sangue e
cortando-lhes os órgãos genitais.
O chamado Novo Mundo foi visto
como uma extensa e última terra pós-diluviana, espécie de reminiscência
pútrida, úmida e frígida. Outras vezes, tratava-se de uma região da qual
o diabo se apoderou e para a qual atraiu hordas de selvagens.
Em
escritos que datam de meados do século XVIII, esse continente
antagônico, cheio de extremos, pantanoso e hostil – mas também ora
desértico e altíssimo –, apresentava, como “animais melancólicos”, os
seus homens imberbes e glabros em todas as partes do corpo, com porte
menor do que o dos europeus, menos fortes, com menor ardor pelas
mulheres, produtores de leite nas mamas, menos sensíveis, com pequenos
órgãos reprodutores, mais crédulos e mais covardes, capazes de – como
quaisquer outras bestas daquelas terras infelizes – expressar
indocilidade e languidez, quando não eram praticantes do canibalismo.
Lactíferos e impúberes, não havia mesmo do que se vangloriar o homem
americano. Em oposição aos europeus, geralmente ursinos e pilosos, os
indígenas tinham uma alegada pouca masculinidade, que seria semelhante à
dos lisos eunucos e à dos homens tonsurados.
E, no ambiente em
que viviam – ambiente este de onde diziam ter se engendrado a sífilis
que se disseminou pela Europa –, proliferavam animais que eram,
inicialmente, aproximados aos do Velho Mundo.
As criaturas
americanas ficavam, entretanto, em grande desvantagem, causada pelos
preconceitos da época: para os viajantes e colonizadores, não havia na
América os portentosos mamíferos africanos e os elegantes animais
domésticos da Europa, mas, sim, uma proficuidade de animalejos de sangue
frio, gigantescas serpentes, anfíbios de todas as ordens e insetos
monstruosos, todos eles habitantes do clima chuvoso.
Dizia-se que
tais seres germinavam do barro, quase por geração espontânea – uma das
teses divulgadas naqueles idos e que só foi definitivamente jogada por
terra por Pasteur em suas pesquisas ligadas à fermentação. Assim como
Santo Agostinho havia afirmado que as rãs nasciam da terra, herança do
pensamento de Aristóteles e de Plínio, na América os sapos eram os
filhos do chão podre, no seio do qual aquelas “criaturas malvadinhas” se
reproduziam rapidamente, em espantosa prolificidade.
Os
estudiosos daqueles idos faziam a generalização de tudo o que fosse
específico – e todo charco se tornava justificativa para pântanos sem
fim, assim como cada pequeno mamífero era uma explicação para a
inferioridade dos demais animais americanos (a mesma crítica era válida
para os animais da Polinésia no século XVIII).
Nesse raciocínio, o
puma era considerado um leão menor, sem juba, mais fraco e mais
covarde; a anta era um elefantúsculo; a lhama, um camelo mirrado; a
alpaca, um camelo ainda menor. Até os animais comuns ao Velho e ao Novo
Mundo eram considerados menores na América, como lobos, raposas, cervos,
alces e cabritos montanheses.
Como se não bastasse, a distância e
o insulamento da América em relação ao restante do mundo conhecido
faziam com que religiosos questionassem a situação da fauna daquele
continente no momento em que a Arca de Noé fora preenchida pelos bichos.
O mais proeminente destes homens era o padre José de Acosta
(1540-1600), para quem os animais do Novo Mundo, caso tivessem de fato
estado na Arca, deveriam, mediante a lógica da teologia, ter continuado
no Velho Mundo ao saírem dela.
Ele se apoiava em Santo Agostinho,
que dizia que os animais habitantes das ilhas teriam diversas origens:
os anfíbios nasceriam da própria terra, os domésticos poderiam ter sido
trazidos por barcos, mas os selvagens e nocivos – dada a distância entre
certas ilhas e um continente – poderiam ter sido encaminhados pelos
anjos de Deus.
O jesuíta missionário Bernabé Cobo (1582-1657)
também compartilhava desta crença: ele acreditava que os anjos levaram
os animais mais longínquos para o zoológico flutuante de Noé e, baixadas
as águas do dilúvio, foram devolvidos a seus locais de origem.
O
que veio a amenizar essas angústias teológicas foi a tese de um
trânsito terrestre via estreito de Behring, supondo uma anterior ligação
de terra, a qual não mais existia; tese esta que ajudou a derrubar as
controversas teorias pré-adâmicas que punham em xeque a cronologia da
Bíblia.
Como os pesquisadores se utilizavam também dos mesmos
nomes para descrever animais diferentes dos dois mundos – uma atitude
nada científica difundida pelos primeiros conquistadores –, as confusões
ficavam reforçadas: o jaguar e a onça eram tigres; o puma era um leão; a
alpaca era uma ovelha.
Em parte, tornava-se inevitável aos
europeus fazer comparações usando referenciais do mundo que conheciam,
da mesma forma que os romanos antigos chegaram a chamar o leão africano
de urso, o avestruz de pássaro e o elefante de boi lucano. E muitas
inteligências do período iluminista embarcaram em concepções descabidas.
Para Voltaire, por exemplo, os porcos do México tinham o umbigo nas
costas, os carneiros eram vagarosos, e os leões, insignificantes, calvos
e sem juba. O puma era quase um estranho antepassado do Dragão
Encantado e do sentimental Ferdinando, o Touro.
Havia pelo
continente, em vez de tamanduás, “ursos formicários” de pequeno porte,
enquanto “pequenos javalis” era o termo usado para se referir aos porcos
selvagens. Os cervos eram não mais do que cabritos reduzidos, e os
porcos-espinhos também não recebiam um tratamento entusiasmado.
A
danta (anta, ourignac ou “alce”) seria mesmo um elefante que não tinha
dado certo. E ficou bem conhecida, naquela época, a informação de que os
cães da América sequer tinham força para latir. Toda a animália da
região do Orinoco, por exemplo, era descrita como uma fauna de aspecto
mesquinho...
Os pássaros também não ficaram fora das numerosas
críticas contra a avifauna do Novo Mundo. Em geral, reclamava-se de sua
incompetência para o canto, da insistência de espécies diminutas – como o
caso do colibri –, de aves iridescentes e coloridíssimas, mas
praticamente mudas, e da presença de “rouxinóis” roucos e estridentes.
Curiosamente, dois pássaros praticamente míticos, posto que presentes
em várias lendas da humanidade, mas com os quais muitos povos nem sequer
mantiveram contato direto, eram presentes no pensamento que se
consolidava no continente americano: o rouxinol e a cotovia.
O
médico e escritor irlandês Oliver Goldsmith (1728/30-1774), que nada
sabia sobre a face mais ocidental do mundo e pegou carona remotamente
nas pseudo-teses buffonianas (* veja ao final do texto: "Conde de
Buffon"), ajudou a espalhar fábulas sobre a estranheza do continente
americano, presentes como curiosidades nos oito volumes de seu "History
of the Earth and animated nature", de 1774, nos quais descrevia, por
exemplo, uma Geórgia infestada de escorpiões, morcegos, serpentes,
tigres e índios ferozes; e ainda havia na América, para ele, gigantes
patagônicos; símios que davam sermões; rouxinóis que conversavam; um
cuco brasileiro que produzia um som horrível; o imitador mocking-bird;
as andorinhas que se escondiam no oco das árvores ou mergulhavam em
bandos em lagos de águas profundas para lá passarem o inverno.
Uma grande atração para o pensamento da época eram mesmo os supostos
gigantes da região da Patagônia, no sul do continente, mais
especificamente na Terra do Fogo, que ora eram descritos como seres
idiotas e imbecis, ora como dotados de inteligência notável. Além da
influência de Buffon, outro clássico enciclopedista que ajudou a
propagar ideias errôneas foi o enciclopedista holandês Cornelius
Franciscus De Pauw (1739-1799), que ressaltava a natureza fraca e
corrompida da América, na qual os caimãs e crocodilos não tinham o furor
dos seus pares africanos.
Dentre os absurdos que escreveu,
menciono a carne de iguana como provocadora da sífilis (o
“mal-francês”), e a existência de rãs que eram capazes de mugir como
bezerros. Ele relatou também que, dos numerosos pântanos americanos,
saltou uma casta de rãs que chamaram índios, espécie intermediária entre
os homens e os orangotangos.
John Hawkins (1719-1789), para
quem, no Novo Mundo, tudo era “degenerado ou monstruoso”, asseverava a
existência de leões na Flórida com o seguinte belo raciocínio, entre
mitológico e heráldico:
"os habitantes da Flórida usam colares de
chifres de unicórnio; donde existem muitos unicórnios na Flórida; e
donde deve haver leões e tigres, leões especialmente, se é verdade o que
dizem da inimizade entre eles e os unicórnios, pois não há besta sem o
seu inimigo, de tal modo que onde se encontra um, o outro não deve estar
ausente”.
Gerbi cita um certo Schlegel que falava de
gatos-tigres, de camelos pigmeus, de leões calvos e bastardos, e o
próprio Shopenhauer fazia comparações entre a anta e o elefante, o puma e
o leão, o jaguar e o tigre, a lhama e o camelo, e o mico com os símios.
Junto a isso, os estudiosos diziam que os animais europeus não se
aclimatavam bem na América, com exceção do porco, que alegavam ter
proliferado no México.
.....
(*) CONDE DE BUFFON -
Georges-Louis Leclerc (1707-1788), mais conhecido como Conde de Buffon,
foi um dos intelectuais franceses mais proeminentes do século XVIII, ao
lado de iluministas como Voltaire e Rousseau. Esse pensador desenvolveu
teses, isto é, ideias baseadas em especulações e pesquisas, sobre a
inferioridade e o caráter degenerado e débil (isto é, imperfeito e mal
formado) dos animais e das pessoas que se desenvolveram fora do
continente europeu. Buffon servia-se do nascimento dos saberes que
formaram a biologia moderna para fundamentar as suas teses. Aos estudos
da vida e da formação biológica dos seres, o conde de Buffon acrescentou
o ponto de vista do eurocentrismo.
.....
FONTE: "Todos os Monstros da Terra: Bestiários do Cinema e da Literatura" - por Adriano Messias. - São Paulo: EDUC: FAPESP.
IMAGENS:
1 e 2. Monstros das Viagens de Sir John Mandeville - "Crônica de Nuremberg" (1493)
3. Demônio Marinho desenhado por Ambroise Paré, médico autodidata do século XVI.
4. Colombo acreditava que encontraria monstros pelo Novo Mundo - Essa
xilogravura de 1544 por Sebastian Münster, matemático e geógrafo alemão,
retrata, da esquerda para a direita, um "ciapod", um "ciclope", gêmeos
siameses, uma "blemia" e uma "cynocephaly". Münster lecionava na
Universidade de Heidelberg, e na Universidade de Basileia. Era muito
conhecido por ser o autor do livro Cosmografia Universal, uma obra em
quatro volumes, só traduzida para latim em 1550. (Foto: The Conversation
/ Wikimedia Commons)
5. Criptídeo de Frei André Thévet
(1502-1590), frade franciscano francês, explorador, cosmógrafo e
escritor que viajou ao Brasil no século XVI, tendo escrito obras sobre
os costumes da terra naquele tempo. Criptido ou criptídeo é um termo
usado na criptozoologia para se referir a uma criatura cuja existência é
sugerida mas para a qual não existem provas científicas para comprovar.
6. O Dodô, lâmina de "A History of the Earth and Animated Nature", por
Oliver Goldsmith, publicado em London, 1816 reprodução por Jacques de
Seve. (nome científico: Raphus cucullatus) é uma espécie extinta de ave
da família dos pombos que era endêmica de Maurício, uma ilha no Oceano
Índico. O Dodô é um dos primeiros exemplos de espécie animal totalmente
extinta pela espécie humana. Ver “The Dodo in the Caucus Race”, por
Stephen Jay Gould, em Natural History (nov 1996). A título de
curiosidade, o Dodô aparece em "Alice no País das Maravilhas", de Lewis
Carroll. Nessa obra, o animal pretendia ser uma caricatura do próprio
autor – diz-se que sua gagueira o fazia pronunciar seu nome
“Dodo-Dodgson”.
7. Sapos e Jacarés - Lâmina 51 do vol. 4 de
"History of the Earth, and Animated Nature", por Oliver Goldsmith.
Filadélfia: Impresso por Mathew Carey, 1795.
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