E. sente que sua hora chegou. Mas os SS têm para ela não a morte
imediata, mas uma proposta. É um trabalho leve, de meras duas horas por
dia. Receberia uma ração extra e alojamento aquecido. Depois de seis
meses, seria libertada.
Era uma proposta que não podia ser
recusada. Quando ela é encaminhada para o banho, é só um banho mesmo.
Sem demoras, segue-se o exame médico. Um ginecologista testa, apalpa,
observa e faz perguntas sobre sua saúde, todas concentradas em sua vida
sexual. Depois diz que precisa passar por uma pequena cirurgia. Que
exige, porém, anestesia geral. No dia seguinte, Eva acorda com pontos no
abdômen.
Ao ter alta, é apresentada a seu alojamento. No lugar de
um uniforme, ganha um vestido e roupas de baixo. Coisa cara, tomada de
uma vítima mais rica. E, de fato, o lugar é muito mais decente que os
beliches infestados de percevejos aos quais estava acostumada. Recebe
também um café da manhã. E é a mesma ração dada aos guardas. São quase
20h, hora do expediente. “Fique quieta, faça o trabalho, e nada de ruim
vai acontecer”, é instruída.
Finalmente
ela é conduzida ao local de trabalho. Um quarto. Antes que possa
terminar de ligar os pontos, um homem adentra. É um prisioneiro como
ela. Alemão, como ela. Um dos “triângulos verdes”, bandidos comuns
usados pelos nazistas como força de repressão. Ouve, por trás das
paredes, carrascos da SS dando risadinhas. E nota que há buracos nas
paredes. Eles seriam observados.
A escolha era trabalhar ou tomar
uma surra e ir parar na câmara de gás. Sete outros a visitam naquela
noite. E assim passaria a ser por três dias por semana mais as tardes de
domingo. Até dez homens por dia.
Todos os dias, Frau E. podia ver
pela janela a entrada do campo, logo em frente ao prostíbulo. Mas a
promessa de libertação nunca seria cumprida. Algumas ganhariam trabalhos
administrativos. Outras voltariam para o lugar de onde vieram. E havia
também as destinadas a Auschwitz II — Birkenau, a seção de extermínio.
Eterno tabu
A
história aqui contada é uma composição de diversos testemunhos, a
grande maioria deles fragmentários ou dados não por quem viveu, mas por
quem ouviu falar ou conversou com elas. Particularmente a descrição
geral que Iga Bunalska, do Grupo de Estudos de Auschwitz, publicou num
trabalho recente.
Não aconteceu apenas em Auschwitz I. Foram dez deles, como em Sachsenhausen, Dachau
e Monowitz (também conhecido por Auschwitz III; um campo separado, a
vários quilômetros do mais famoso. Em todos, menos Auschwitz, as
prisioneiras vinham do campo feminino de Ravensbrück, de onde não só
eram mandadas para bordéis em campos de extermínio como para instalações
do Exército.
Numa estimativa citada por Insa Eschebach, diretora
do Centro Ravensbrück, foram no mínimo 200 delas. Vinte e uma das quais
trabalhavam no Bloco 24 de Auschwitz.
“Quando
falamos nos bordéis, não há quase nenhuma fonte existente sobre o
assunto”, afirma a historiadora. “Parece que o assunto ainda é um tabu.
Depois da guerra, as pessoas fingiram que esse tema não existiu.”
Além
do profundo trauma pessoal, há um estigma da velha moral sexual. Várias
das mulheres forçadas à prostituição, usando o triângulo preto, haviam
sido presas por se prostituírem.
“É uma ironia que, enquanto os
nazistas tentavam restringir a prostituição nas cidades alemãs, eles a
institucionalizaram nos campos”, afirmou o historiador alemão Robert
Sommers, autor de Das KZ Bordell (O Bordel do Campo de Concentração), em
entrevista à Reuters.
Também havia o risco bem real de serem
vistas como colaboradoras — e as diversas cenas de ex-amantes dos
oficiais nazistas arrastadas pelas ruas e tendo os cabelos raspados pela
multidão enfurecida, na liberação, mostram que, absolutamente, essa não
era uma preocupação infundada.
O estigma já existia enquanto os
campos estavam abertos. Num documentário para a TV pública alemã ARD, a
prisioneira soviética Nina Mikhailovna, uma civil de 20 anos capturada
na Bielorrússia para trabalhos forçados, que viveria em São Paulo antes
de se estabelecer nos EUA, contou:
“Quando descobrimos que uma
garota no nosso bloco foi escolhida, nós a pegamos, jogamos um lençol em
cima dela e a espancamos com tanta força que ela mal podia se mexer.
Não era certo se ela se recuperaria. Elas só queriam uma vida melhor, e
nós as castigamos por isso”.
Produtividade
A
ideia partiu de Heinrich Himmler, comandante da SS e responsável pelo
programa de extermínio, engenheiro do Holocausto. Ele afirmou que isso
serviria para motivar os trabalhadores forçados. E, em suas palavras,
“evitaria homossexualismo” nos campos.
Parecia uma piada de mau
gosto — a maior de todos os tempos, se de fato era. Uma forma adicional
de humilhar os prisioneiros famélicos, não exatamente dispostos ao sexo
em sua condição. Essa foi a opinião expressa por vários deles.
“Qualquer
um que pense que o Bloco 24 era alguma espécie de presente aos
prisioneiros não entende Auschwitz”, afirmou o prisioneiro polonês Jozef
Szajna em seu testemunho. “Foi feito para humilhar as pessoas. Era só
mais um exemplo do cinismo e crueldade dos alemães. Os bordéis não eram
nada de excepcional. Só foram outro crime do Nacional Socialismo
alemão.”
Acreditasse ou não Himmler no que estava fazendo, o
primeiro campo abriu em Mauthausen/Gusen em 1942. Auschwitz ganharia o
seu em 30 de junho de 1943. Eles permaneceriam ativos até os últimos
dias.
Himmler
não estendeu sua concessão aos judeus, que estavam lá com o propósito
de morrer, menos que trabalhar. Eram prisioneiros alemães e eslavos que
estavam nas duas pontas da cama. Judias, apesar de certas histórias que
hoje são muito contestadas, também não foram alistadas. A única mulher
que participou do programa e não era alemã ou eslava foi uma prisioneira
política holandesa.
O plano era destinado aos trabalhadores
especiais dos campos. Eram sobretudo prisioneiros alemães por crimes
comuns, servindo de kapos, seguranças internos, ou em funções na
indústria química I.G. Farben, instalada em Auschwitz III. Segundo o
historiador Robert Sommer, menos de 1% da população aprisionada visitou
os bordéis nos campos.
Piotr Setkiewicz, diretor do Centro de
Pesquisas do Museu de Auschwitz, afirma que os administradores punham
“um enorme valor na existência desse tipo de instituição no campo e,
como sua correspondência indica, tratavam isso como um fator central em
aumentar a produtividade dos prisioneiros”.
Os que visitavam eram
os que recebiam prêmios por superarem cotas de produção. Esse dinheiro
também servia para comprar cigarros, alimentos e outros privilégios. Os
15 minutos no bordel custavam 2 reichsmarks. Parte ia para a mulher,
parte para o campo. Um prisioneiro que quisesse participar do programa
precisava colocar o nome numa lista.
No fim do dia, no pátio onde
recebiam ordens, tinha seu nome chamado publicamente. Era então levado
ao Bloco 24, a Frauenhaus (casa das mulheres), como era chamada
eufemisticamente. Antes de terem acesso à prisioneira, eram postos nus
diante de um médico, que besuntava seus pênis com pomada antisséptica.
Alguns recebiam injeções.
Era oficialmente proibido, mas alguns
oficiais alemães também frequentaram os bordéis, subornando os
responsáveis. É de imaginar que tivessem uma atitude bem diferente da
dos prisioneiros. Nem todos os prisioneiros aceitaram o convite.
“Muitos,
especialmente os prisioneiros políticos bem informados, tentavam evitar
a exposição a chantagens por parte da SS”, testemunhou o sobrevivente
Fritz Kleinman. “Intrigas surgiram entre os clientes do bordel e
transferências punitivas e espancamentos foram o resultado das
escapadelas dos prisioneiros especiais.”
Decisão forçada
Laqueaduras
como no caso que abre a matéria não eram universais. E, feitas nas
condições do campo, algumas terminavam em morte. As mulheres que não
eram esterilizadas poderiam terminar grávidas e sofrer abortos forçados,
que também podiam acabar em morte.
Uma história contada pela
sobrevivente Zofia Bator-Stepien relata que uma moça que ela conheceu se
inscreveu imediatamente no programa. “Quando o médico terminou de
examiná-la, perguntou se ela fazia a menor ideia de para onde estava
indo. Ela disse que não, mas ouviu que ela ganharia muito pão.”
O
médico também avisou: “Pense cuidadosamente sobre isso, porque, mesmo
que isso te dê uma chance de sobreviver a Auschwitz, você pode querer
ser mãe no futuro, e isso não será possível”. Ao que ela respondeu: “Não
quero ser mãe. Só quero pão”.
E isso nos leva a um ponto central:
a questão de muitas das mulheres terem sido voluntárias, de que há
relatos, como outro caso contado por Zofia Bator-Stepien, delas à
vontade com o cargo, desfilando em roupas de luxo e maquiagem pelo
campo, e inclusive tentando continuar quando dispensadas.
“É
impossível falar em livre-arbítrio quando você leva em conta as
condições em que elas eram forçadas a tomar essa decisão”, registrou a
sobrevivente Nanda Herbermann (1903-1979) em seu livro-testemunho Der
Gesegnete Abgrund (O Abismo Abençoado).
Nanda, uma católica presa
por divulgar material antinazista, foi forçada a cuidar do bloco de
prostitutas em Ravensbrück. Ou, como define Insa Eschebach: “Sei que
pensamos sobre isso por uma perspectiva diferente, mas, para muitas
delas, foi uma decisão muito simples: era ou o bordel e a sobrevivência
ou a câmara de gás”.
As relações com prisioneiros podiam ser
amigáveis. Frau B., um dos casos lembrados numa exibição recente do
Centro Ravensbrück, afirmou que eles tendiam a ser respeitosos. “Estavam
presos por anos e ficavam felizes em terem qualquer contato humano”,
afirmou.
Ela lembrou que, vez ou outra, a sessão se limitava a uma
conversa. B. também comentou sobre a vigilância dos guardas. “Estávamos
tão dessensibilizadas que simplesmente pensávamos: ‘Que se dane, morram
de olhar, malditos’.”
Mas nem sempre os olhares eram por
voyeurismo. E essa é uma outra parte da perfídia dessa história. Os
prisioneiros do triângulo rosa eram observados não apenas por guardas
mas por médicos especialmente designados.
Cerca de 100 mil gays
foram presos pelos nazistas e, desses, entre 5 mil e 15 mil foram
mandados para os campos de extermínio. Não se sabe quantos sobreviveram,
mas o número é provavelmente bem baixo.
O triângulo rosa marcava
um prisioneiro para atrocidades homofóbicas pelos guardas e outros
prisioneiros. Há casos de SS brincando de tiro ao alvo com seus
triângulos cor-de rosa. A eles eram dados trabalhos dos mais
extenuantes.
E tudo isso não era simplesmente pela ideia de
extermínio. Mas de procurar uma “cura gay”. O trabalho extenuante era
parte do “tratamento”. Vários sofreram com experimentos feitos com
hormônios, outros foram castrados.
E,
em Auschwitz, Himmler em pessoa ordenou um experimento mais
“psicológico”: sexo forçado com as trabalhadoras do Bloco 24, uma vez
por semana. Não é preciso entrar em detalhes para entender como foi uma
experiência traumática para os dois lados.
Fracasso
Do
ponto de vista mais cínico e prático possível, o programa dos bordéis
foi um fracasso. “Por tudo o que descobri, não funcionou”, diz Sommer.
“Pouquíssimas pessoas estavam em condições físicas de realmente
usá-los.”
Não há dados, mas historiadores como Sommer e Isa
acreditam que a maioria das prostitutas, dado simplesmente não estarem
passando fome, sobreviveu ao período no campo.
Mas, a essas,
restaria um injustificável estigma para o resto da vida. “Não sabemos de
nenhuma que tenha sido compensada pelo que passou”, afirma o
historiador. “É importante que essas mulheres recebam de volta parte de
sua dignidade.”
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