Maristela Crispim*
Sousa. Esta é a última reportagem de uma série de seis produzidas na região de Sousa, sertão da Paraíba. Ao chegar à Cidade, rapidamente se percebe qual é a principal atração do lugar. Hotéis, papelarias e diversos outros comércios, além de estátuas espalhadas pela Cidade remetem ao Vale dos Dinossauros, Unidade de Conservação considerada um dos mais importantes sítios paleontológicos existentes no mundo.
Compreende uma área de mais 1.730 quilômetros quadrados, abrangendo aproximadamente 30 localidades no alto sertão da Paraíba, entre elas os municípios de Sousa, Aparecida, Marizópolis, Vieirópolis, São Francisco, São José da Lagoa Tapada, Santa Cruz, Santa Helena, Nazarezinho, Triunfo, Uiraúna, Cajazeiras.
Os registros mais importantes estão em Sousa, a sete quilômetros da sede do Município, com acesso pela PB-391 sentido Sousa/Uiraúna. As marcas deixadas por esses animais pelo sertão paraibano despertam o interesse de cientistas brasileiros e estrangeiros, atraindo também muitos turistas e curiosos de todo o mundo.
Segundo a paleontóloga Aline Ghilardi, doutora em Geologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), pesquisadora vinculada ao Laboratório de Paleoecologia e Paleoicnologia (LPP) da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), provavelmente as principais pistas com pegadas tenham sido observadas por muitos fazendeiros, e antes deles mesmo por índios, devido ao fato de serem muito evidentes. Contudo, a descoberta, com caráter científico, é atribuída a Luciano Jacques de Moraes.
Ela explica que, para a Ciência, a história começa na década de 1920, quando o engenheiro de minas do Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM) encontrou algumas pegadas no leito do Rio do Peixe, em Sousa (PB). Luciano descreve essas pegadas pela primeira vez em seu livro “Serras e Montanhas do Nordeste” (1924), atribuindo-as pistas a dinossauros bípedes e quadrúpedes.
Moraes, todavia não era paleontólogo e por isso tentou buscar ajuda de pesquisadores especializados. Ele enviou amostras para os Estados Unidos, mas nunca obteve resposta. Depois fez contato com o pesquisador alemão, Friedrich von Huene, eminente paleontólogo da época que já havia trabalhado no Brasil. Von Huene nunca visitou a Paraíba, mas foi quem publicou a primeira descrição científica das pegadas de dinossauros Sousa em um dos seus livros, “Verschiedene mesozoische Wierbeltierreste aus Südamerika” (1931). Ele baseou-se exclusivamente nos desenhos de Moraes.
As pegadas do sertão da Paraíba ficaram esquecidas pela ciência por mais de duas décadas. Somente em 1969 voltaram a ser analisadas, dessa vez, pelos paleontólogos brasileiros Llewelyn Ivor Price e Diógenes de Almeida Campos, também do DNPM. Porém, foi só a partir de 1975 que estudos mais aprofundados passaram a ser realizados na região, como trabalho do padre paleontólogo italiano Giuseppe Leonardi.
Leonardi explorou vastamente toda área, descobrindo novos sítios e escavando diversas pistas. Ao longo de 1970, 1980 e 1990, dezenas de trabalhos foram produzidos por ele e alguns colegas de universidades do Rio de Janeiro e do Nordeste, descrevendo amplamente o registro de pegadas de dinossauros da região. A riqueza paleontológica de Sousa (e entorno) passou, então, a ser reconhecida internacionalmente.
Ao longo dos seus trabalhos, Leonardi fez muito esforço para obter a proteção dos sítios com pegadas da Paraíba. Até que, em 1992, um Decreto-Lei estadual finalmente tombou um dos principais sítios como Monumento Natural, o hoje chamado “Monumento Natural Vale dos Dinossauros“.
Atualmente são conhecidos mais de 24 sítios icnofossilíferos na região, somando várias centenas de trilhas de pegadas de dinossauros. A região é cadastrada como um sítio geo-paleontológico de grande relevância nacional, por sua singularidade, importância científica e expressão cênica.
Leonardi trabalhou amplamente na região até o fim dos anos 1990 e produziu alguns trabalhos também no início dos anos 2000, quando foi chamado pela Igreja para trabalhar no continente africano.
Até 2014, não foram encontrados ossos de dinossauros em Sousa. Isso mudou quando Luís Carlos Gomes, habitante de Sousa, publicou uma foto do material na Internet. A pesquisadora Aline Ghilardi e alguns colegas ficaram fascinados com a descoberta, entraram em contato com ele, resgataram o material e, em 2016, publicaram o primeiro trabalho com material ósseo de dinossauro encontrado em Sousa.
Desde então o interesse paleontológico pela região foi retomado e os olhos do mundo agora estão atentos para novas descobertas. Parte do projeto de pós-doutorado de Aline Ghilardi envolve o estudo do registro paleontológico de Sousa. Ela adianta que, em breve, serão publicadas novos registros.
Janelas para o passado
“Sousa guarda a história de um período muito interessante no tempo, com poucos registros no mundo. Trata-se de uma página rara da história da vida, a qual nós temos a honra de ter ‘muito bem escrita’ aqui no Brasil, já que os fósseis da região são muito bem preservados”, afirma Aline.E prossegue: “O registro paleontológico de Sousa pode nos ajudar a entender como evoluíram alguns dos últimos grandes grupos de dinossauros que reinariam no Planeta até o fim do Período Cretáceo. Além disso, pode ajudar a entender o que aconteceu com as populações de dinossauros logo após a separação da América do Sul e da África”.
Ela explica que o registro de pegadas fósseis é de importância ímpar na Paleontologia: “Elas nos ajudam a compreender o comportamento e a dinâmica populacional de espécies extintas, coisas que dificilmente podem ser inferidas apenas por meio de ossos. Agora, sabemos que Sousa tem os dois tipos de registros (pegadas e ossos). Isso abre uma janela incrível para compreender com detalhes como foi a vida no passado da região”.
Preservação do patrimônio
Aline conta que as pegadas ficaram preservadas dentro dos pacotes de rocha da região por milhões de anos: “Na medida em que a rocha é intemperizada e erodida, elas aparecem, o que é ótimo para nós, que podemos finalmente estudá-las e apreciá-las. Infelizmente, porém, assim que uma pegada é exposta ao tempo (fatores climáticos, como o sol e a chuva), passa a ser destruída lentamente. As pegadas estão nas rochas, portanto estão sujeitas aos mesmos processos que destroem as rochas: o intemperismo e a erosão. Isso, sem contar os fatores antrópicos, como atividade de veículos sobre os sítios, pisoteio (por gente e também por gado), a retirada das rochas para utilizações diversas, etc”.Infelizmente, muitas pegadas descritas por Leonardi nas décadas de 1970, 1980 e 1990 já desapareceram. Alguns sítios, inclusive, foram completamente destruídos. Um deles, soterrado por lixo, enquanto outro por conta da ação de veículos rurais. “O fato de as pegadas terem cerca de 130 milhões de anos não significa que elas vão durar para sempre”, lamenta. A partir do momento em que são expostas, elas estão sujeitas à destruição, que pode ser lenta ou muito rápida, dependendo dos fatores envolvidos.
Segundo Aline, as pegadas do próprio Monumento Natural Vale dos Dinossauros estão sob risco de desaparecimento, pois o intemperismo e erosão continuam agindo sobre elas, mesmo que estejam protegidas de outros fatores de risco mais diretos, como os de ação humana.
A única forma de preservar permanentemente pegadas, ou pistas de pegadas, é isolando-as dos fatores naturais e antrópicos que as degradam. Ou seja: coletando todas e colocando dentro de um museu ou construindo uma estrutura/edificação sobre elas. “Não dá para fazer isso com todas as milhares de pegadas de Sousa, mas alguns sítios específicos, de maior relevância, merecem essa atenção, pois têm relevância internacional”, sugere.
“Parte do meu trabalho atual é digitalizar tridimencionalmente as trilhas de pegadas mais importantes de Sousa, para que elas fiquem guardadas, pelo menos digitalmente. Isso ajuda a ciência, mas a memória local/cultural está fadada a ser perdida com o passar do tempo, se não for adequadamente cuidada/protegida. Vale a pena lembrar que cada trilha de pegadas é única. E, por mais que outras pistas apareçam na medida em que a rocha for sendo consumida, elas nunca são as mesmas, nunca guardam a mesma informação”, enfatiza.
Relação com a Bacia sedimentar do Araripe
“É possível comparar os dois depósitos em termos de relevância, mas as idades são diferentes, assim como os tipos de fósseis preservados”, explica a pesquisadora.Segundo ela, os depósitos da Bacia do Araripe, no Sul do Ceará, são de uma idade um pouco posterior dentro do Período Cretáceo e representam um antigo ambiente lagunar com influência marinha. Os fósseis de Sousa, por sua vez, são um pouco mais antigos e representam rios e lagoas que existiram em um antigo vale confinado.
“O Araripe preserva fósseis corporais em quantidade e qualidade excepcional, enquanto a região de Sousa preserva icnofósseis (registros indiretos da presença de organismos) em quantidade e qualidade excepcional”, ressalta.
Segundo ela, ambas as áreas podem ser consideradas como Fossil Lagesttate, um termo utilizado por paleontólogos para se referir a depósitos paleontológicos de grande excepcionalidade. Fossil lagesttate são raros, guardam grande quantidade de informação paleontológica, e têm importância científica reconhecida internacionalmente.
“A Formação Santana, da Bacia do Araripe, algumas vezes é incluída entre os cinco fossil lagersttate mais importantes do mundo. A região de Sousa ainda merece mais estudos para ser reconhecida dessa forma”, finaliza.
* A jornalista viajou à Paraíba a convite da Inter Press Service – News Agency (IPS)
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