domingo, 16 de dezembro de 2018

Música popular e participação política na década de sessenta

No Brasil, a década de sessenta foi marcada por um crescente processo de politização da cultura. A produção do período abordou intensamente questões ligadas à transformação dos padrões sociais e de comportamento, dentro daquele levante conhecido como contracultura, que se caracterizava pelo inclinação antiautoritária, contra-tecnocrática, e de recusa às categorias políticas tradicionais. No entanto, a pauta mais propriamente contracultural aportou em território nacional por volta do fim da década. Antes disso, vigorava entre a maioria dos artistas, estudantes e intelectuais brasileiros uma orientação política mais próxima da chamada “esquerda oficial”, mobilizada em torno de problemas como a desigualdade social e o combate ao imperialismo norte-americano. No entanto, para melhor compreendermos a origem deste pensamento é necessário reconstruir o seu sentido histórico.
Estrelas de um movimento nascente.
O entusiasmo em torno do papel da arte como instrumento direto de transformação social tem suas origens no pensamento marxista-leninista, o qual aponta para o papel do intelectual e do artista no processo revolucionário. Expressões como agitprop (agitação + propaganda), proletkult (cultura proletária), nacional-popular e realismo socialista remetem àquele tipo de arte conhecida como “engajada” ou “militante” , ou seja, que refuta a condição de plena autonomia atribuída à obra artística desde o Renascimento, apostando na relação convergente entre produção cultural e militância política.
No Brasil, a efervescência político-cultural ganhava força a partir de 1961 com a proximidade da esquerda com o poder através do governo João Goulart. As chamadas “Reformas de Base” pleiteadas por Goulart prometiam transformações estruturais profundas nas condições econômica, agrária e administrativa do país. Tais transformações impulsionavam propostas de conscientização popular e renovação estética e dinamizavam o panorama artístico. Com o golpe civil-militar de 1964, o horizonte de transformações sociais se perdeu. Todavia, o balde de água fria não desestimulou a produção cultural, que continuava na mão da esquerda e ainda não recebia uma repressão aguda por parte do regime ditatorial, esta veio a se impor a partir do chamado AI-5, no ano de 1968.
Como sugere o historiador Marcos Napolitano[1], esse período foi marcado por uma transformação no campo de ação de intelectuais e artistas comprometidos com uma transformação social. Se antes estes tinham como principal  trincheira a literatura – como já apontava o filosofo existencialista Frances Jean Paul Sartre [2]– agora eram nas artes de alcance mais coletivo que a ação cultural-política ganhava maior relevância: no teatro, no cinema e , principalmente, na música popular.
Cartaz de Deus e o Diabo na Terra do Sol.
A necessidade de vincular uma mensagem política dentro de uma linguagem artística de grande apelo popular representava um desafio específico para os artistas. O movimento  Cinema Novo, por exemplo, buscou uma estética que fosse convergente com a própria condição de subdesenvolvimento nacional. Ao optarem por soluções técnicas que driblassem a escassez de recursos através da inventividade (“uma câmera da mão e uma idéia na cabeça”), os cineastas buscavam uma maneira terceiromundista de olhar para o terceiro mundo, se opondo à linguagem cinematográfica das grandes produções norte americanas e denunciando os problemas sociais brasileiros. A música popular tinha a responsabilidade de ser a manifestação com maior popularidade. Tal condição impunha o desafio de se inserir em um mercado fonográfico em ascensão, buscando alcançar um público cada vez maior e mais jovem, sem abrir mão de uma mensagem socialmente crítica, da qualidade estética e tendo que fazer frente à “invasão” da música norte-americana.

O Centro Popular de Cultura Da UNE

É impossível abordar a relação entre cultura e política na década de sessenta sem fazer referencia ao Centro Popular de Cultura (CPC) da União Nacional dos Estudantes (UNE). A criação formal do CPC ocorreu em Dezembro de 1961, sua relevância deduz-se da quantidade de artistas importantes que passaram por ele: Ferreira Gullar, Arnaldo Jabor, Oduvaldo Vianna Filho, Carlos Diegues, Geraldo Vandré, Carlos Lyra, Sergio Ricardo entre outros. As atividades do centro eram realizadas a partir de orientações teórico-metodológicas, tais como aquelas redigidas por um de seus fundadores, o sociólogo Carlos Estevam Martins, e publicadas em 1962 no Manifesto Centro Popular de Cultura. Nele, defendia-se uma arte revolucionária voltada para a conscientização política das massas, opondo-se àquelas concepções tidas como alienadas ou estético-formalistas. Para Martins, era necessário alertar os novos artistas sobre a importância da integração social e política no âmbito de uma determinada comunidade e avançar sobre o artista despolitizado ou romântico, que não se preocupava com temas sociais de seu tempo.
A UNE de um Brasil em convulsão.
De acordo com o manifesto do CPC, os artistas e intelectuais brasileiros estariam distribuídos em três classes: os conformistas, os incorformistas e aqueles de “atitude revolucionária consequente”, que seriam conscientes de uma ideia de evolução ou progresso histórico orientado, em que o povo teria o papel de agente revolucionário, pois, dado que os membros do CPC “optaram por ser povo”[3], eles deveriam empenhar sua produção na concretização de tal propósito. No entanto, de acordo com o manifesto, dentro daquelas que seriam as três artes do povo, não seria aquela genuinamente popular a mais apta a realizar os propósitos revolucionários. A “arte do povo”, provinda das comunidades rurais e dos meios urbanos em descompasso com o processo de industrialização, é classificada como “ingênua e inconsequente”. O segundo tipo, intitulada “arte popular”, apesar de mais elaborada, ainda ocuparia um lugar desprivilegiado, dado o seu caráter de passatempo “cujo objetivo supremo consiste em distrair o espectador ao invés de informá-lo.” Finalmente, para o CPC, a “arte popular revolucionária” seria aquela que representaria a verdadeira essência do povo na medida em que se identifica com a sua aspiração fundamental, a emancipação plena dentro da sociedade de classes. O que se deduz destas premissas é que o artista deveria assumir o papel de militante político e orientar a sua obra em favor da liberação do povo brasileiro. Assim, a obra deveria enunciar as transformações que viriam a ser implantadas pela revolução e denunciar os fatores que impediam a plena realização desta.
Gil, os Mutantes e um domingo de 1967 no parque da tropicália.
Como apontou Arnaldo Contier [4], as teses de Martins aproximavam-se daquelas defendidas por Andrei Jdanov, o encarregado de estabelecer as diretrizes da arte soviética dentro do regime Stalinista. Ainda segundo Contier, o chamado “Jdanovismo” impôs uma interpretação mecânica do determinismo marxista, estimulando uma estética de orientação realista e comprometida com o regime soviético, em que tendências do modernismo eram tomadas como formalistas ou vanguardistas eram refutadas.
As diretrizes do manifesto não foram irrestritamente abraçadas pelos artistas, todavia, compositores como Geraldo Vandré, Carlos Lyra, Edu Lobo e Sergio Ricardo, em parceria com personalidades ligadas ao teatro, como Oduvaldo Viana Filho, Gianfrancesco Guarnieri, Augusto Boal e Ruy Guerra, orientaram a sua produção a partir da necessidade de estabelecer uma comunicação mais direta com o grande público. Estes artistas elaboraram suas produções tendo em mente a possibilidade de uma intervenção transformadora do artista na realidade social do país. Nesse contexto destaca-se a contribuição de Edu Lobo para a peça “Arena Canta Zumbi” (1965) de Gianfrancesco Guanieri, o musical “Pobre menina rica” (1963) de autoria de Vinícius de Moraes e Carlos Lyra e o “Show Opinião” (1964) de autoria de Augusto Boal, que contou com a participação de Nara Leão, Zé Keti e João do Vale.
Arena conta Zumbi
Em função dos referenciais de esquerda, permeados por conotações ambíguas – coexistiam tendências marxistas, positivismo histórico-social e nacionalismo romântico -, ideais como os de Nação, Povo, Identidade e Libertação Nacional foram ressignificados a partir de uma retomada das raízes populares autênticas, resultando em um padrão estético e temático para as canções. Assim foram privilegiados temas e espaços idealizados como o morro (favela, pobreza, periferia das grandes cidades), o sertão (fome, messianismo religioso, coronelismo, má distribuição de terra), a figura do retirante, do negro marginalizado e a mitologia afro-brasileira. Tais elementos temáticos eram organizados a partir de diretrizes composicionais que acabaram sendo “sacralizadas” como normas. Dessa forma, seguindo o modelo de Contier[5], obtinha-se uma espécie de fórmula que poderia ser resumida no seguinte esquema: RITMOS REGIONAIS (moda de viola, samba, baião, ritmos de candomblé) + TRATAMENTO HARMÔNICO-MELÓDICO SOFISTICADO (acordes dissonantes, modulações, cromatismos) + CRÍTICA SOCIAL (canções tematizando a exploração das camadas pobres, a discriminação racial, miséria no campo).
Edu Lobo.
As canções de Edu Lobo talvez sejam os exemplos mais bem sucedidos dentro daquilo que poderíamos chamar de estética nacional-popular da canção: Arrastão (Edu Lobo e Vinicius de Moraes), Upa Neguinho (Edu Lobo e Gianfrancesco Guarnieri) e Ponteio (Edu Lobo e Capinan). Além dessas, podemos destacar também Maria moita (Carlos Lyra e Vinicius de Moraes), Influência do Jazz (Carlos Lyra) e Pedro Pedreiro(Chico Buarque). O destaque para os compositores Edu Lobo, Carlos Lyra e Chico Buarque – herdeiros da Bossa Nova – aponta para o fato de que a vertente nacionalista-engajada não buscava se opor, mas conciliar as inovações introduzidas pela Bossa Nova com uma temática mais política e uma estética mais próxima de gêneros tradicionais. Isso implicava em romper com o aspecto excessivamente “cool” da Bossa e levava em consideração a necessidade de alcançar um público mais amplo e jovem dentro de um sistema de circulação cultural em que a televisão começava a ocupar um lugar central.
Foto utilizada no filme “Tropicália”.
Crédtio: Campanella Neto.
Para citar alguns exemplos, Napolitano[6] destaca dois discos precursores da tentativa de forjar uma Bossa Nova nacionalista e que deram início àquilo que veio a ser conhecido como canção de protesto: em “Depois do Carnaval” (1963), do violonista e compositor Carlos Lyra, nota-se uma mudança de enfoque temático, pois sai de cena o romantismo bossanovista e entram as questões de cunho social e ideológico. Mesmo assim, como observa o autor, o disco ainda contem um acento jazzístico nos arranjos e na interpretação que remete muito fortemente à Bossa Nova. Desse disco, a canção “Marcha da quarta feira de cinzas” se tornou emblemática da luta contra o regime militar. Ainda sobre os exemplos, o LP “Um senhor de talento”(1964), do compositor Sérgio Ricardo, mantém o tom engajado nas letras, mas consegue se distanciar dos trejeitos bossanovistas e se aproximar mais do samba de raiz. Esse movimento pode ser percebido na canção “Barravento”, a qual é construída sobre a estrutura de pergunta e resposta, com a voz principal dialogando com um coro feminino, sob uma textura percussiva que abdica quase inteiramente da harmonia.

Considerações gerais

O surgimento da sigla MPB foi um dos principais frutos da efervescência cultural e política da década de sessenta. Sob um ponto de vista musicológico, mais do que um estilo musical definido, a designação MPB remete a uma interface entre cultura e política, campo de cruzamento entre signo musical e ideário social.
O termo nacional-popular[7], na acepção do filósofo marxista Antonio Gramsci, refere-se ao intercambio entre a “língua popular” e as “classes cultas”, no sentido de selar uma “aliança progressista” entre estes polos. Nesse sentido, ainda que a MPB enquanto manifestação artística extrapole o universo estritamente político, falar de MPB é referir-se a um projeto estético-ideológico em que intelectuais e artistas buscaram na cultura popular um recurso de legitimação para certa imagem de nação. Dentro da arena em que se desenrolava tal debate, além de cultura e ideologia, o elemento mercado também impunha sua força. Foi justamente a contradição entre ideologia e mercado que talvez tenha “tirado o chão” da MPB nacionalista e politicamente engajada, forçando-a a assumir a sua condição mercadoria
A jovem Guarda.
Heloisa Buarque de Holanda, comentando a relação entre efervescência cultural e engajamento político nos anos 60, observa que “a relação direta estabelecida entre arte e sociedade era tomada como uma palavra de ordem” [8]. A reflexão da autora sugere que existia certa simplificação ou crença irrestrita nessa relação, que, no caso da música, talvez ignorasse justamente o aspecto de produto que assumia a canção popular dentro de uma indústria cultural em ascensão. Pode nos servir de exemplo o sucesso do programa “O fino da Bossa” (1965-1968), frequentado pelas principais figuras da MPB. Por traz do mise-en-scène catártico e nacionalista que predominava nos espetáculos, erguia-se uma grande estrutura comercial que desestabilizava os propósitos programáticos que impulsionavam os artistas. Nesse contexto, outro evento que vale lembrar é a famigerada “Passeata contra a Guitarra Elétrica”, ocorrida em Julho de 1967 na cidade de São Paulo. A marcha contou com a participação de artistas importantes como Elis Regina, Jair Rodrigues, Edu Lobo, Geraldo Vandré e até Gilberto Gil. Sob o pretexto de lutar contra o instrumento que simbolizava a invasão norte-americana, os artistas partidários da “autentica música popular brasileira” saíram do Largo São Francisco e foram até o teatro Paramount, na Avenida Brigadeiro Luís Antonio. Travava-se ali um embate com um novo gênero que surgia, a Jovem Guarda, que começava a despontar como programa de maior audiência televisiva. Por trás da batalha estava a estratégia de marketing da TV Record para promover a rivalidade entre os nacionalistas da MPB e a “americanizada” Jovem Guarda, no intuito de chamar a atenção para a estréia de um novo programa musical intitulado “Frente Ampla da MPB”.
O citado Manifesto do CPC é uma excelente documentação das mentalidades que circulavam entre certos artistas e intelectuais que acreditavam cumprir um papel na conscientização popular através da imersão numa visão da conjuntura cultural, social e política do país. A inserção do povo dentro deste discurso orientava-se por uma busca para incluí-lo de uma forma bastante específica, escamoteando as diferenças e sacrificando a multiplicidade em prol da formulação de um sentimento nacional sem cissuras. As canções frequentemente adotavam um tom esquemático e pedagógico sob o pretexto de transmitirem uma mensagem de transformação social. Sem entrar em um julgamento sobre a qualidade dessas canções, podemos citar Beto, bom de bola e A fábrica, do compositor Sérgio Ricardo, Zé do trem e Sem Deus com a família, de César Roldão Vieira, e principalmente no compacto lançado em 1963 em parceria da UNE com o CPC intitulado O povo canta.
De acordo com o sociólogo e jornalista Gilberto Vasconcelos, o “grande erro” da canção de protesto foi “relegar a segundo plano o que é fundamental na música: sua dimensão estética.” [9]. O autor ressalta que passou a vigorar “uma concepção sociologizante, instrumentalista das canções: o componente textual desta foi reduzido ao mero veículo de significados políticos” [10]. O caráter climático da canção de protesto se resumia a bradar a chegada de “um dia que virá”, em tom celebrativo e persuasivo. Para finalizar, cabe uma citação do ensaísta José Paulo Paes: “a superação das nossas contradições históricas é concebida abstratamente: há uma fetichização do povo como entidade histórica” .[11].

Bibliografia

CONTIER, Arnaldo.Edu Lobo e Carlos Lyra: o nacional e o popular na canção de protesto (os anos 60). Revista Brasileira de História, São Paulo, vol. 18, n. 35, p. 13-52, 1998.
HOLLANDA, Heloísa Buarque de.Impressões de viagem – CPC, vanguarda e desbunde 1960/70.Rio de Janeiro: Aeroplano, 2004.
NAPOLITANO, Marcos; A arte engajada e seus públicos; Revista Estudos Históricos FVG, v2, n 28 (2001)
_____________ Seguindo a Canção: Engajamento político e industria cultural na MPB(1959-1969); ED Annablume, São Paulo. 2001
NAPOLITANO,Seguindo a Canção: Engajamento político e industria cultural na MPB(1959-1969); ED. Annablume, São Paulo. 2001
VASCONCELLOS, Gilberto. Música popular: de olho na fresta. Rio de Janeiro: Graal, 1997
VELOSO, Caetano.Verdade tropical. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.

Notas

[1] NAPOLITANO, Marcos; A arte engajada e seus públicos; Revista Estudos Históricos FVG, v2, n 28 (2001)
[2] Referencia ao texto “O que é literatura?” Em que o filósofo Frances reflete, entre outras coisas, sobre a possibilidade de engajamento político na literatura e nas outras artes.
[3] Tal como se lê em um dos trechos do manifesto do CPC.
[4]CONTIER, Arnaldo. Edu Lobo e Carlos Lyra: o nacional e o popular na canção de protesto (os anos 60). Revista Brasileira de História, São Paulo, vol. 18, n. 35, 1998, nota 7.
[5] Idem
[6] NAPOLITANO, Marcos; A arte engajada e seus públicos; Revista Estudos Históricos FVG, v2, n 28 (2001)
[7] NAPOLITANO,Seguindo a Canção: Engajamento político e industria cultural na MPB(1959-1969); ED Annablume, São Paulo. 2001, p 6
[8] HOLLANDA, Heloísa Buarque de.Impressões de viagem – CPC, vanguarda e desbunde 1960/70, p 30
[9] VASCONCELOS, Gilberto. De olho na fresta, p 42
[10] VASCONCELLOS, Gilberto. Música popular: de olho na fresta. Rio de Janeiro: Graal, 1997, p. 42.
[11] Paes apuf Vasconcelos; Música popular: de olho na fresta. Rio de Janeiro: Graal, 1997, p. 42.
[12] VELOSO, Caetano; Verdade Tropical, p 116

Nenhum comentário:

Postar um comentário