No Brasil, a década de sessenta foi
marcada por um crescente processo de politização da cultura. A produção
do período abordou intensamente questões ligadas à transformação dos
padrões sociais e de comportamento, dentro daquele levante conhecido
como contracultura, que se caracterizava pelo inclinação
antiautoritária, contra-tecnocrática, e de recusa às categorias
políticas tradicionais. No entanto, a pauta mais propriamente
contracultural aportou em território nacional por volta do fim da
década. Antes disso, vigorava entre a maioria dos artistas, estudantes e
intelectuais brasileiros uma orientação política mais próxima da
chamada “esquerda oficial”, mobilizada em torno de problemas como a
desigualdade social e o combate ao imperialismo norte-americano. No
entanto, para melhor compreendermos a origem deste pensamento é
necessário reconstruir o seu sentido histórico.
O entusiasmo em torno do papel da arte
como instrumento direto de transformação social tem suas origens no
pensamento marxista-leninista, o qual aponta para o papel do intelectual
e do artista no processo revolucionário. Expressões como agitprop (agitação + propaganda), proletkult
(cultura proletária), nacional-popular e realismo socialista remetem
àquele tipo de arte conhecida como “engajada” ou “militante” , ou seja,
que refuta a condição de plena autonomia atribuída à obra artística
desde o Renascimento, apostando na relação convergente entre produção
cultural e militância política.
No Brasil, a efervescência
político-cultural ganhava força a partir de 1961 com a proximidade da
esquerda com o poder através do governo João Goulart. As chamadas
“Reformas de Base” pleiteadas por Goulart prometiam transformações
estruturais profundas nas condições econômica, agrária e administrativa
do país. Tais transformações impulsionavam propostas de conscientização
popular e renovação estética e dinamizavam o panorama artístico. Com o
golpe civil-militar de 1964, o horizonte de transformações sociais se
perdeu. Todavia, o balde de água fria não desestimulou a produção
cultural, que continuava na mão da esquerda e ainda não recebia uma
repressão aguda por parte do regime ditatorial, esta veio a se impor a
partir do chamado AI-5, no ano de 1968.
Como sugere o historiador Marcos Napolitano[1],
esse período foi marcado por uma transformação no campo de ação de
intelectuais e artistas comprometidos com uma transformação social. Se
antes estes tinham como principal trincheira a literatura – como já
apontava o filosofo existencialista Frances Jean Paul Sartre [2]–
agora eram nas artes de alcance mais coletivo que a ação
cultural-política ganhava maior relevância: no teatro, no cinema e ,
principalmente, na música popular.
A necessidade de vincular uma mensagem
política dentro de uma linguagem artística de grande apelo popular
representava um desafio específico para os artistas. O movimento Cinema
Novo, por exemplo, buscou uma estética que fosse convergente com a
própria condição de subdesenvolvimento nacional. Ao optarem por soluções
técnicas que driblassem a escassez de recursos através da inventividade
(“uma câmera da mão e uma idéia na cabeça”), os cineastas buscavam uma
maneira terceiromundista de olhar para o terceiro mundo, se opondo à
linguagem cinematográfica das grandes produções norte americanas e
denunciando os problemas sociais brasileiros. A música popular tinha a
responsabilidade de ser a manifestação com maior popularidade. Tal
condição impunha o desafio de se inserir em um mercado fonográfico em
ascensão, buscando alcançar um público cada vez maior e mais jovem, sem
abrir mão de uma mensagem socialmente crítica, da qualidade estética e
tendo que fazer frente à “invasão” da música norte-americana.
O Centro Popular de Cultura Da UNE
É impossível abordar a relação entre
cultura e política na década de sessenta sem fazer referencia ao Centro
Popular de Cultura (CPC) da União Nacional dos Estudantes (UNE). A
criação formal do CPC ocorreu em Dezembro de 1961, sua relevância
deduz-se da quantidade de artistas importantes que passaram por ele:
Ferreira Gullar, Arnaldo Jabor, Oduvaldo Vianna Filho, Carlos Diegues,
Geraldo Vandré, Carlos Lyra, Sergio Ricardo entre outros. As atividades
do centro eram realizadas a partir de orientações teórico-metodológicas,
tais como aquelas redigidas por um de seus fundadores, o sociólogo
Carlos Estevam Martins, e publicadas em 1962 no Manifesto Centro Popular
de Cultura. Nele, defendia-se uma arte revolucionária
voltada para a conscientização política das massas, opondo-se àquelas
concepções tidas como alienadas ou estético-formalistas. Para Martins,
era necessário alertar os novos artistas sobre a importância da
integração social e política no âmbito de uma determinada comunidade e
avançar sobre o artista despolitizado ou romântico, que não se
preocupava com temas sociais de seu tempo.
De acordo com o manifesto do CPC, os
artistas e intelectuais brasileiros estariam distribuídos em três
classes: os conformistas, os incorformistas e aqueles de “atitude
revolucionária consequente”, que seriam conscientes de uma ideia de
evolução ou progresso histórico orientado, em que o povo teria o papel
de agente revolucionário, pois, dado que os membros do CPC “optaram por
ser povo”[3],
eles deveriam empenhar sua produção na concretização de tal propósito.
No entanto, de acordo com o manifesto, dentro daquelas que seriam as
três artes do povo, não seria aquela genuinamente popular a mais apta a
realizar os propósitos revolucionários. A “arte do povo”, provinda das
comunidades rurais e dos meios urbanos em descompasso com o processo de
industrialização, é classificada como “ingênua e inconsequente”. O
segundo tipo, intitulada “arte popular”, apesar de mais elaborada, ainda
ocuparia um lugar desprivilegiado, dado o seu caráter de passatempo
“cujo objetivo supremo consiste em distrair o espectador ao invés de
informá-lo.” Finalmente, para o CPC, a “arte popular revolucionária”
seria aquela que representaria a verdadeira essência do povo na medida
em que se identifica com a sua aspiração fundamental, a emancipação
plena dentro da sociedade de classes. O que se deduz destas premissas é
que o artista deveria assumir o papel de militante político e orientar a
sua obra em favor da liberação do povo brasileiro. Assim, a obra
deveria enunciar as transformações que viriam a ser implantadas pela
revolução e denunciar os fatores que impediam a plena realização desta.
Como apontou Arnaldo Contier [4], as teses de Martins aproximavam-se daquelas defendidas por Andrei Jdanov, o encarregado de estabelecer as diretrizes da arte soviética dentro do regime Stalinista.
Ainda segundo Contier, o chamado “Jdanovismo” impôs uma interpretação
mecânica do determinismo marxista, estimulando uma estética de
orientação realista e comprometida com o regime soviético, em que
tendências do modernismo eram tomadas como formalistas ou vanguardistas
eram refutadas.
As diretrizes do manifesto não foram
irrestritamente abraçadas pelos artistas, todavia, compositores como
Geraldo Vandré, Carlos Lyra, Edu Lobo e Sergio Ricardo, em parceria com
personalidades ligadas ao teatro, como Oduvaldo Viana Filho,
Gianfrancesco Guarnieri, Augusto Boal e Ruy Guerra, orientaram a sua
produção a partir da necessidade de estabelecer uma comunicação mais
direta com o grande público. Estes artistas elaboraram suas produções
tendo em mente a possibilidade de uma intervenção transformadora do
artista na realidade social do país. Nesse contexto destaca-se a
contribuição de Edu Lobo para a peça “Arena Canta Zumbi” (1965) de
Gianfrancesco Guanieri, o musical “Pobre menina rica” (1963) de autoria
de Vinícius de Moraes e Carlos Lyra e o “Show Opinião” (1964) de autoria
de Augusto Boal, que contou com a participação de Nara Leão, Zé Keti e
João do Vale.
Em função dos referenciais de esquerda,
permeados por conotações ambíguas – coexistiam tendências marxistas,
positivismo histórico-social e nacionalismo romântico -, ideais como os
de Nação, Povo, Identidade e Libertação Nacional foram ressignificados a
partir de uma retomada das raízes populares autênticas, resultando em
um padrão estético e temático para as canções. Assim foram privilegiados
temas e espaços idealizados como o morro (favela, pobreza, periferia
das grandes cidades), o sertão (fome, messianismo religioso,
coronelismo, má distribuição de terra), a figura do retirante, do negro
marginalizado e a mitologia afro-brasileira. Tais elementos temáticos
eram organizados a partir de diretrizes composicionais que acabaram
sendo “sacralizadas” como normas. Dessa forma, seguindo o modelo de
Contier[5],
obtinha-se uma espécie de fórmula que poderia ser resumida no seguinte
esquema: RITMOS REGIONAIS (moda de viola, samba, baião, ritmos de
candomblé) + TRATAMENTO HARMÔNICO-MELÓDICO SOFISTICADO (acordes
dissonantes, modulações, cromatismos) + CRÍTICA SOCIAL (canções
tematizando a exploração das camadas pobres, a discriminação racial,
miséria no campo).
As canções de Edu Lobo talvez sejam os
exemplos mais bem sucedidos dentro daquilo que poderíamos chamar de
estética nacional-popular da canção: Arrastão (Edu Lobo e Vinicius de Moraes), Upa Neguinho (Edu Lobo e Gianfrancesco Guarnieri) e Ponteio (Edu Lobo e Capinan). Além dessas, podemos destacar também Maria moita (Carlos Lyra e Vinicius de Moraes), Influência do Jazz (Carlos Lyra) e Pedro Pedreiro(Chico
Buarque). O destaque para os compositores Edu Lobo, Carlos Lyra e Chico
Buarque – herdeiros da Bossa Nova – aponta para o fato de que a
vertente nacionalista-engajada não buscava se opor, mas conciliar as
inovações introduzidas pela Bossa Nova com uma temática mais política e
uma estética mais próxima de gêneros tradicionais. Isso implicava em
romper com o aspecto excessivamente “cool” da Bossa e levava em
consideração a necessidade de alcançar um público mais amplo e jovem
dentro de um sistema de circulação cultural em que a televisão começava a
ocupar um lugar central.
Para citar alguns exemplos, Napolitano[6]
destaca dois discos precursores da tentativa de forjar uma Bossa Nova
nacionalista e que deram início àquilo que veio a ser conhecido como
canção de protesto: em “Depois do Carnaval” (1963), do violonista e
compositor Carlos Lyra, nota-se uma mudança de enfoque temático, pois
sai de cena o romantismo bossanovista e entram as questões de cunho
social e ideológico. Mesmo assim, como observa o autor, o disco ainda
contem um acento jazzístico nos arranjos e na interpretação que remete
muito fortemente à Bossa Nova. Desse disco, a canção “Marcha da quarta
feira de cinzas” se tornou emblemática da luta contra o regime militar.
Ainda sobre os exemplos, o LP “Um senhor de talento”(1964), do
compositor Sérgio Ricardo, mantém o tom engajado nas letras, mas
consegue se distanciar dos trejeitos bossanovistas e se aproximar mais
do samba de raiz. Esse movimento pode ser percebido na canção
“Barravento”, a qual é construída sobre a estrutura de pergunta e
resposta, com a voz principal dialogando com um coro feminino, sob uma
textura percussiva que abdica quase inteiramente da harmonia.
Considerações gerais
O surgimento da sigla MPB foi um dos
principais frutos da efervescência cultural e política da década de
sessenta. Sob um ponto de vista musicológico, mais do que um estilo
musical definido, a designação MPB remete a uma interface entre cultura e
política, campo de cruzamento entre signo musical e ideário social.
O termo nacional-popular[7],
na acepção do filósofo marxista Antonio Gramsci, refere-se ao
intercambio entre a “língua popular” e as “classes cultas”, no sentido
de selar uma “aliança progressista” entre estes polos. Nesse sentido,
ainda que a MPB enquanto manifestação artística extrapole o universo
estritamente político, falar de MPB é referir-se a um projeto
estético-ideológico em que intelectuais e artistas buscaram na cultura
popular um recurso de legitimação para certa imagem de nação. Dentro da
arena em que se desenrolava tal debate, além de cultura e ideologia, o
elemento mercado também impunha sua força. Foi justamente a contradição
entre ideologia e mercado que talvez tenha “tirado o chão” da MPB
nacionalista e politicamente engajada, forçando-a a assumir a sua
condição mercadoria
Heloisa Buarque de Holanda, comentando a
relação entre efervescência cultural e engajamento político nos anos
60, observa que “a relação direta estabelecida entre arte e sociedade
era tomada como uma palavra de ordem” [8].
A reflexão da autora sugere que existia certa simplificação ou crença
irrestrita nessa relação, que, no caso da música, talvez ignorasse
justamente o aspecto de produto que assumia a canção popular dentro de
uma indústria cultural em ascensão. Pode nos servir de exemplo o sucesso
do programa “O fino da Bossa” (1965-1968), frequentado pelas principais
figuras da MPB. Por traz do mise-en-scène catártico e nacionalista que
predominava nos espetáculos, erguia-se uma grande estrutura comercial
que desestabilizava os propósitos programáticos que impulsionavam os
artistas. Nesse contexto, outro evento que vale lembrar é a famigerada
“Passeata contra a Guitarra Elétrica”, ocorrida em Julho de 1967 na
cidade de São Paulo. A marcha contou com a participação de artistas
importantes como Elis Regina, Jair Rodrigues, Edu Lobo, Geraldo Vandré e
até Gilberto Gil. Sob o pretexto de lutar contra o instrumento que
simbolizava a invasão norte-americana, os artistas partidários da
“autentica música popular brasileira” saíram do Largo São Francisco e
foram até o teatro Paramount, na Avenida Brigadeiro Luís Antonio.
Travava-se ali um embate com um novo gênero que surgia, a Jovem Guarda,
que começava a despontar como programa de maior audiência televisiva.
Por trás da batalha estava a estratégia de marketing da TV Record para
promover a rivalidade entre os nacionalistas da MPB e a “americanizada”
Jovem Guarda, no intuito de chamar a atenção para a estréia de um novo
programa musical intitulado “Frente Ampla da MPB”.
O citado Manifesto do CPC é uma
excelente documentação das mentalidades que circulavam entre certos
artistas e intelectuais que acreditavam cumprir um papel na
conscientização popular através da imersão numa visão da conjuntura
cultural, social e política do país. A inserção do povo dentro deste
discurso orientava-se por uma busca para incluí-lo de uma forma bastante
específica, escamoteando as diferenças e sacrificando a multiplicidade
em prol da formulação de um sentimento nacional sem cissuras. As canções
frequentemente adotavam um tom esquemático e pedagógico sob o pretexto
de transmitirem uma mensagem de transformação social. Sem entrar em um
julgamento sobre a qualidade dessas canções, podemos citar Beto, bom de bola e A fábrica, do compositor Sérgio Ricardo, Zé do trem e Sem Deus com a família, de César Roldão Vieira, e principalmente no compacto lançado em 1963 em parceria da UNE com o CPC intitulado O povo canta.
De acordo com o sociólogo e jornalista
Gilberto Vasconcelos, o “grande erro” da canção de protesto foi “relegar
a segundo plano o que é fundamental na música: sua dimensão estética.” [9].
O autor ressalta que passou a vigorar “uma concepção sociologizante,
instrumentalista das canções: o componente textual desta foi reduzido ao
mero veículo de significados políticos” [10].
O caráter climático da canção de protesto se resumia a bradar a chegada
de “um dia que virá”, em tom celebrativo e persuasivo. Para finalizar,
cabe uma citação do ensaísta José Paulo Paes: “a superação das nossas
contradições históricas é concebida abstratamente: há uma fetichização
do povo como entidade histórica” .[11].
Bibliografia
CONTIER, Arnaldo.Edu Lobo e Carlos Lyra: o nacional e o popular na canção de protesto (os anos 60). Revista Brasileira de História, São Paulo, vol. 18, n. 35, p. 13-52, 1998.
HOLLANDA, Heloísa Buarque de.Impressões de viagem – CPC, vanguarda e desbunde 1960/70.Rio de Janeiro: Aeroplano, 2004.
NAPOLITANO, Marcos; A arte engajada e seus públicos; Revista Estudos Históricos FVG, v2, n 28 (2001)
_____________ Seguindo a Canção: Engajamento político e industria cultural na MPB(1959-1969); ED Annablume, São Paulo. 2001
NAPOLITANO,Seguindo a Canção: Engajamento político e industria cultural na MPB(1959-1969); ED. Annablume, São Paulo. 2001
VASCONCELLOS, Gilberto. Música popular: de olho na fresta. Rio de Janeiro: Graal, 1997
VELOSO, Caetano.Verdade tropical. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
Notas
[1] NAPOLITANO, Marcos; A arte engajada e seus públicos; Revista Estudos Históricos FVG, v2, n 28 (2001)
[2]
Referencia ao texto “O que é literatura?” Em que o filósofo Frances
reflete, entre outras coisas, sobre a possibilidade de engajamento
político na literatura e nas outras artes.
[3] Tal como se lê em um dos trechos do manifesto do CPC.
[4]CONTIER, Arnaldo. Edu Lobo e Carlos Lyra: o nacional e o popular na canção de protesto (os anos 60). Revista Brasileira de História, São Paulo, vol. 18, n. 35, 1998, nota 7.
[5] Idem
[6] NAPOLITANO, Marcos; A arte engajada e seus públicos; Revista Estudos Históricos FVG, v2, n 28 (2001)
[7] NAPOLITANO,Seguindo a Canção: Engajamento político e industria cultural na MPB(1959-1969); ED Annablume, São Paulo. 2001, p 6
[8] HOLLANDA, Heloísa Buarque de.Impressões de viagem – CPC, vanguarda e desbunde 1960/70, p 30
[9] VASCONCELOS, Gilberto. De olho na fresta, p 42
[10] VASCONCELLOS, Gilberto. Música popular: de olho na fresta. Rio de Janeiro: Graal, 1997, p. 42.
[11] Paes apuf Vasconcelos; Música popular: de olho na fresta. Rio de Janeiro: Graal, 1997, p. 42.
[12] VELOSO, Caetano; Verdade Tropical, p 116
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