Há 80 anos, morria Lampião, o maior bandido do Brasil:
Ainda em vida
e durante as oito décadas após a morte de Lampião, cresceu a imagem de
"bandido-herói", que tirava dos ricos para dar aos pobres. Em 1931, o
New York Times afirmou que seria espécie de Robin Hood, que tira dos
ricos e dá aos pobres. Ideia que esconde o assassino brutal, que matou
inclusive mulheres, crianças e idosos de forma indiscriminada e que
praticava estupros e outras violências contra mulheres. As boas ações
existiram, mas eram exceção.
Virgolino Ferreira da Silva era
vaidoso quanto à reputação e tentava induzir a imagem que tinham dele.
Dizia que o assassinato do pai, um inocente morto pela polícia, teria
sido a motivação de sua entrada no cangaço. Porém, as fontes mais
confiáveis mostram que ele e os irmãos mais velhos já estavam envolvidos
em crimes e que a morte do pai teria sido, inclusive, reação a um dos
episódios nos quais os filhos se envolveram. Mesmo assim, o episódio
ajudou a criar o mito de criminoso movido pela vingança.
Na
construção da mitologia a seu respeito, concedeu entrevista em sua
célebre visita a Juazeiro do Norte, em 1926. Questionado pelo jornalista
se não o incomodava extorquir dinheiro de fazendeiros e destruir o
patrimônio caso se negassem a colaborar, ele respondeu que jamais fez
tal coisa. Conforme sua versão, tão somente pedia dinheiro a seus
amigos. Virgolino lia matérias de jornais e revistas a seu respeito,
quando os encontrava. Chegava a ficar muito zangado quando considerava
algo injusto.
Em 28 de fevereiro de 1931, o New York Times chegou a
divulgar que Lampião era espécie de Robin Hood - tirava dos ricos e dava
aos pobres. Essa versão cresceu nas décadas após sua morte, difundida
na literatura de cordel, na literatura, no cinema, até movimentos como o
Manguebeat. Nessas narrativas, Lampião ganha ares de herói. Um
herói-bandido, um justiceiro numa terra de injustiças Porém, os
registros históricos não fornecem elementos para justificar essa versão.
O contexto de surgimento do cangaço ajuda a entender o fenômeno. No
sertão inóspito, as instituições quase não funcionavam. A Justiça quase
nunca alcançava autores de crimes. A violência muitas vezes se tornava o
recurso para vingar ofensas e fazer o que o Estado não foi capaz. Fosse
motivo legítimo ou não, o fato é que, aos olhos dos sertanejos, tais
motivações diferenciavam seus autores de criminosos comuns. Além disso, a
criminalidade aumentava durante secas mais intensas. Não só ela, como o
fanatismo religioso e o messianismo. Eram sintomas da crise na
sociedade sertaneja, conforme classifica Billy Jaynes Chandler,
historiador americano, autor de Lampião, o rei dos cangaceiros. Esse era
o ambiente no qual proliferava o cangaço.
No caso de Lampião,
todavia, não há elementos que fundamentem a vingança como razão para a
entrada no cangaço. O início da vida de violência dele e dos irmãos foi
muito mais decorrência de conflitos com vizinhos e acusações mútuas de
invasão de propriedade e roubo de gado. A divergência logo degenerou em
conflito armado. Em seguida, é fato que o assassinato do pai foi um
marco para mergulhá-los em definitivo na vida de crime. Porém, a
vingança nunca foi alcançada. Os que foram apontados como principais
responsáveis pela morte de José Ferreira sobreviveram em décadas aos
irmãos cangaceiros.
Os atos também não justificam a imagem de
Lampião como alguém motivado pelas injustiças sociais. É verdade que
promovia atos de generosidade. Em Riacho Seco, município de Curaçá, na
Bahia, houve um dos episódios no qual estabelecimentos comerciais foram
saqueados, em 17 de setembro de 1929. Em um deles, as mercadorias foram
distribuídas à população. Além disso, dava esmolas a pobres e retirantes
com quem simpatizasse - e fazia isso com grande ostentação. Episódios
como esse fortalecem a tese de "Robin Hood sertanejo". As boas ações
também costumavam ser exageradas. Porém, não era a regra de sua atuação.
Os episódios de violência cometidos por Lampião tinham como motivação
conseguir dinheiro para o bando.
Houve, claro, vários episódios de
vingança, sim. Nos primeiros anos, raramente deixava de escolher seus
alvos entre alguém com que tivesse contas a acertar. Esse padrão começou
a mudar. Em julho de 1925, quando seu primeiro irmão morreu no cangaço -
Levino - passou a direcionar sua ira de forma indiscriminada. Entre
agosto e setembro de 1925, seu bando atacou povoados na divisa entre
Pernambuco e Alagoas. Pelo menos sete pessoas morreram. Conforme
testemunhas, os alvos tinham sido gente pobre sem histórico de desavença
com os cangaceiros. Entre as vítimas, pelo menos uma criança e um
idoso, ambos desarmados.
Lampião também se irritava profundamente
com construções de estradas. Grande parte de seu sucesso dependia do
isolamento dos sertões, das dificuldades de deslocamento e comunicação.
Por isso, incendiava estações de trem, cortava fios telegráficos e
ameaçava trabalhadores de obras de rodovias. Em outubro de 1929, atacou
canteiro de estrada que saia de Juazeiro, na Bahia, e matou nove
trabalhadores.
Em dezembro do mesmo ano, o bando matou a sangue
frio sete policiais que estavam rendidos. Em outubro de 1935, como
vingança pela morte de cangaceiros por uma milícia civil, o bandoc
atacou fazenda e matou um idoso e uma jovem.
Existe a imagem de
Lampião respeitoso com mulheres, mas ela convive com testemunhos de
estupros cometidos pelo bando, alguns dos quais o próprio chefe tomava
parte. Um dos relatos apontam que 25 cangaceiros violentaram a jovem
mulher de um delegado, na frente do marido. Virgolino teria sido o
primeiro. Além disso, por volta dos anos 1930, há relatos de que o
cangaceiro passou a impor um bizarro código de conduta. Mulheres que
usavam cabelo cortado ou saias curtas eram surradas por ele. Um dos
membros do bando, o terrível José Bahiano, instituiu como castigo a
prática de marcar as mulheres com ferro em brasa.
Também estava
longe de ser um crítico do poder. Como aponta Billy Jaynes Chandler, do
ponto de vista das ideias e preconceitos, era um sertanejo convencional.
Não se opunha a hierarquias e privilégios. Pelo contrário, frustrava-se
de não estar entre eles. Ao ser entrevistado em Juazeiro do Norte,
disse que gostaria de ser comerciante caso abandonasse o cangaço. Em
outra ocasião, afirmou que gostaria de ser fazendeiro. A um jornalista,
disse admirar a agricultura, a criação de gado e o comércio. "Eram as
classes conservadoras que ele mais admirava". (CHANDLER, 1980. P. 239.
Editora Paz e Terra).
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