“Ser a separação da alma e do corpo no
composto humano e fim da vida ou cessação dos movimentos dos espíritos e
sangue nos brutos. Pintaram os egípcios a morte em figura de moça com
arco e flecha nas mãos, olhos vendados, asas nos pés, sem orelhas. Moça a
fizeram porque se bem a todas as idades faz estragos, principalmente
atira a mocidade […] no véu dos olhos se vê que a morte não distingue as
pessoas, mas a grandes e pequenos, bons e maus, igualmente leva.
Mostram as asas nos pés a velocidade com que a todas as partes se acha
tirando vidas; a falta de orelhas é demonstração de que não ouve a
ninguém, á razões e gemidos sempre surda. Entrou no mundo a morte para
castigo do pecado, mas não deixa de ser útil ao mundo, porque se não
fora o medo da morte, seria imortal a malícia humana”.
Medo de morrer? Não. Medo de
não se preparar para a morte. De não estar pronto e por isso, não aceder
ao paraíso. E como se aparelhar? De início por uma disposição
testamentária que contava com o dedo da Igreja: a legislação canônica
favorecia os legados ad pias causas. Quem dispunha de seus bens
sem contemplar a instituição, se arriscava a não receber a
extrema-unção e não ser enterrado em solo sagrado. E o medo de se perder
nas chamas do Inferno fazia com que os indivíduos fizessem o possível
para deixar esmolas ou encomendar missas em benefício de sua alma,
sempre pecadora. Para redimi-la, se derramavam doações e pagamentos,
óbolos e espórtulas.
Quem habitava a Colônia, sabia
a morte “coisa muito ordinária, natural aos homens”. No dizer simplório
de um desses homens, “como ser humano, sou mortal e posso morrer”, ou
no entendimento poético de outro, “somos, afinal, de fino metal e por
não saber da morte nem da vida…”. O importante era “aparelhar-se para
bem morrer enquanto são, rijo, valente e de pé”. Não se esquecendo
nunca, no momento de testar, de dizer que se estava “com todo o seu
juízo e siso e comprido entendimento com todos os seus cinco sentidos
perfeitos, potências, memória e entendimento corporal, que Nosso Senhor
teve por bem de lhe dar para com ele se reger e governar como é sua
vontade”.
Diz Alcântara Machado, que a
grande maioria dos moradores da capitânia de São Paulo fazia testamento.
Faziam-no desde indigentes como Maria Leite, “tão pobre e tão carregada
de filhos”, que pedia uma cova pelo amor de Deus no convento de São
Francisco e implorava “pelo amor de Deus” que seu caixão fosse
acompanhando pelo vigário e mais três sacerdotes até a tumba da
Misericórdia”, até gente muito abastada ou viajante. O bandeirante
Antônio Rodrigues de Miranda testou “por estar de caminho para o sertão
buscar meu remédio e por ser mortal e não saber a hora que hei de dar
conta da minha vida”. Precavidos, também, certo Pedro Madeira, “por não
saber da morte nem da vida nesta viagem que vou fazer aos Guaianazes”,
ou, Francisco Ribeiro: “se Nosso Senhor fizer de mim alguma coisa nesta
viagem que hora faço adonde Deus me guiar”.
O motivo que levava nossos
antepassados a fazer testamento estava sempre declarado no proêmio dos
documentos. “Temendo-me da morte e desejando por minha alma no
verdadeiro caminho da salvação” ou “considerando quão incerta é a hora
da morte e a estreita conta que devo dar ao meu Redentor e Criador”.
Tinha os que se deixassem mover por inspiração piedosa de “pôr a alma
bem com o Senhor Jesus Cristo”. Ou, como esclarecia certa Isabel
Sobrinha, “para concertar suas cousas de maneira que ficassem postas em
ordem e maneira que todo o cristão tem obrigação fazer”.
Debruçado sobre tais
testamentos, Machado sublinhou que muitos só se lembravam da morte
quando essa se fazia lembrada. O tabelião então encontrava o doente “em
cama, ferido a espingarda”, “doente numa rede”, “preso na mão do Senhor,
muito mal, com grandes dores”, “enfermo na mão de N.SR. Jesus Cristo e
no regaço da Virgem N. Senhora”, “doente de uma flechada que lhe deram
os topiões no sertão de Paracatu”.
Se o achaque permitisse,
mulheres recebiam o oficial, “assentadas em seu estrado”. Nesses casos,
era melhor nomear a Morte por eufemismos e não invocá-la com
insistência: “fazendo Nosso Senhor alguma coisa de mim… Quando deste
mundo de misérias e vale de lágrimas sair à honra e reverência sua…
Quando esta minha alma do corpo terreno de todo sair… No dia do meu
transe”.
A importância de estar preparado levou à divulgação de manuais como certo Breve aparelho e modo fácil para ajudar a bem morrer o cristão com a recopilação de testamentos e penitenciais, várias orações devotas tiradas da Escritura Sagrada,
publicado em Lisboa, em, 1627. O manual, aliás, não escondia no prólogo
o seu uso: “naquela hora de aperto os enfermos e suas almas quando o
apartamento da vida, as dores do corpo, a lembrança do tempo passado
malgastado, os temores do Juízo eterno de Deus, a vista dos Demônios e
finalmente, a lembrança da eternidade perturbe de tal maneira a sua
pessoa posta naquele estado que com a fraqueza das potências corporais
fica uma alma em grande tribulação”.
A obra tinha seis partes, num verdadeiro itinerário para que o moribundo conseguisse garantir sua entrada no céu:
“A primeira para avisar ao enfermo que
não fez o seu testamento, o faça; a segunda contém um solilóquio para
lhe avivar a fé e inflamar a alma com amor divino. A terceira, perguntas
de Santo Anselmo com orações muito devotas. A quarta, alfabeto de
versos do Saltério de Davi. A quinta, recopilação de palavras sagradas
tiradas da Escritura Santa, excelentes contra demônios. A sexta, versos
de admirável virtude inseridos neles o nome de Jesus o qual serve para o
sexto passo em que a alma se arranca do corpo”.
O manual continha orientação
para ministrar os sacramentos em especial a confissão, além de
repreensões com as quais se censurava o moribundo. Um interrogatório
particular era desejável no caso de se estar morrendo um “converso” ou
cristão novo: para se ter certeza de que não jurara a Maomé, não fizera
feitiçaria ou superstição, não comera carne na quaresma ou cometera
pecado nefando, não desejara pecar por obra ou casar com alguma infiel.
Não se evitavam perguntas íntimas: se o moribundo pecara com alguma
mulher prometendo casar com ela e depois não satisfez a promessa. Se
pecou com animal ou contra a natureza. Se se deleitou em ver partes
desonestas suas ou de outras pessoas e se falou palavras censuráveis.
Quais ilegítimos herdariam e quais não herdariam, além de recomendar que
se deixasse “alimentos” para os bastardos. Mais uma caridade, afinal…
Ao confessar um condenado à morte, o confessor podia fazer sugestões.
Afinal, esmolas para remir cativos, casar órfãs, ajudar hospitais,
reparar igrejas e mosteiros eram sempre bem-vindas. E terminava
consolando o doente com palavras pias e santas. A confissão era
considerada “um remédio”. Acreditava-se que, se corpo e alma eram um só,
aliviar a alma implicava em aliviar o corpo. Seguindo-se a esta,
fazia-se o testamento.
- Texto de Mary del Priore. “Histórias da Gente Brasileira: Colônia (vol.1)”, Editora LeYa, 2016.
Finados: o medo da morte no Brasil Colônia
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