ele não perdeu esse hábito de nadar contra a corrente. Historiador
próximo dos críticos que dissentiam da ortodoxia durante o regime
comunista, esteve em apuros uma vez porque carregava um livro de Trotski
na Moscou dos anos 1970. Com a queda do regime, manteve-se contra a
corrente – e marxista – para se opor ao regime de Viktor Órban (líder do
partido de centro-direita), na Hungria. E, de fato, é preciso querer
nadar contra a corrente para escrever hoje em dia uma biografia
intelectual de Lenin, a exemplo do que fez Krausz.
A publicação de Reconstruindo Lenin no
Brasil busca reequilibrar a bibliografia existente sobre o bolchevique
no País. Até agora, predominam trabalhos dedicados a desconstruir a
imagem do líder da Revolução Russa, escritos por conservadores como
Richard Pipes e Robert Service ou pelo russo Dmitri Volkogonov. Lenin é
nesses relatos um ditador cruel, sedento de poder, que pouco se
importava com o destino do povo e cujo reinado de sangue foi apenas
continuado por Stalin – sua obsessão pela revolução não via limites.
Essa visão tem como pressuposto que o socialismo e a democracia são
impossíveis de conviver, sendo uma utopia desastrosa pensar o contrário.
No outro extremo, as visões hagiográficas ligadas à ortodoxia soviética
pouco acrescentavam à pesquisa histórica para a construção do
personagem.
O leitor de Krausz não encontrará o relato fascinante de um
grande escritor. Acontecimentos da vida do líder soviético ocupam as
primeiras cem páginas da obra. Ali estão sua relação com a amante Inessa
Armand, a amizade com o liberal Piotr Struve, sua origem judaica e
outros fatos escondidos pela historiografia soviética. Krausz se insere
na tradição do russo Vladlén Lóginov, que nos anos 1980 buscava
desestalinizar Lenin, durante a glasnost, para retirá-lo do beco sem
saída da história.
O autor relata as ordens de execuções assinadas por Lenin e é
crítico da adoção do terror como política revolucionária, mesmo no
contexto da guerra civil russa. A execução de sacerdotes e de reféns de
famílias burguesas, além da expulsão de intelectuais e de socialistas
moderados do país são explicadas pela concepção finalista da ação
política para Lenin. Este admitia que a revolução era “a coisa mais
autoritária que há”, um ato no qual “parte da população impõe sua
vontade à outra com o auxílio de fuzis (O Estado e a Revolução)”. Essa violência se tornou desenfreada e tragou tudo, inclusive seu partido, que acreditara dominar essa força.
O capítulo sobre Lenin e o antissemitismo é um ponto interessante
da obra. Krausz mostra como e por que o socialismo atraiu os
intelectuais judeus na Rússia ao se opor ao antissemitismo de
monarquistas e nacionalistas (“Derrote o judeu e salve a Rússia”,
diziam) – 200 mil judeus foram massacrados na guerra civil. É óbvio que a
presença de protofascistas, como Simon Petliura e Nicolai Ustraylov,
entre os exércitos brancos não apaga os crimes vermelhos. Pode-se dizer
que, enquanto Pipes e outros historiadores conservadores subestimam ou
escondem o contexto em que Lenin agiu, Krausz parece usá-lo para
justificá-lo. Falta compreender os mecanismos do uso da violência para
estabelecer uma verdadeira crítica do terror.
Seu objetivo no livro era expor o método de Lenin como pensador e
as conexões de sua obra teórica com sua prática. Krausz busca revelar
uma constante na vida do revolucionário que permita estabelecer um fio
condutor nas diferenças entre “o Lenin autocrático de O Que Fazer e o Lenin libertário de O Estado e a Revolução”.
Esse fio, para ele, é que a “ciência e a teoria eram ferramentas da
realização de metas políticas e sociais”. A incompreensão dessa questão
levaria a interpretações de caráter anistórico sobre o soviético. Tanto
para Lenin quanto para Marx a teoria seria “apenas um guia da ação”.
Seus escritos não teriam função normativa, pois dependeriam das
condições históricas.
Por fim, ao desafio imposto aos historiadores pela “neutralidade
valorativa”, o conceito pensado por Max Weber contra o uso da ciência
para justificar opções políticas, Krausz responde com um ataque: “Esses
cientistas sociais em geral se apresentam como se estivessem acima das
perspectivas de classes e do sistema estabelecido e veem a si mesmo no
papel de juízes”. Tudo porque, para Krausz, a figura de Lenin ainda é
objeto de luta, embora considere sua teoria “única e irrepetível” na
história. De fato, o autor não pretende que seus valores sejam neutros.
Sua proposta de reconstruir Lenin tampouco é. Resta saber se sua tarefa
ainda é exequível um século depois da revolução bolchevique.
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