"Fotografia feita no Recife por volta de 1860. Na época era preciso
esperar no mínimo um minuto e meio para se fazer uma foto. Assim,
preferia-se fotografar as crianças de manhã bem cedo, quando elas
estavam meio sonolentas, menos agitadas. O menino veio com a sua mucama,
enfeitada com a roupa chique, o colar e o broche emprestado pelos pais
dele. Do outro lado, além do fotógrafo Villela, podiam estar a mãe, o
pai e e outros parentes do menino.
Talvez por sugestão do fotógrafo, talvez porque tivesse ficado cansado
na expectativa da foto, o menino inclinou-se e apoiou-se na ama.
Segurou-a com as duas mãozinhas. Conhecia bem o cheiro dela, sua pele,
seu calor. Fora no vulto da ama, ao lado do berço ou colado a ele nas
horas diurnas e noturnas da amamentação, que seus olhos de bebê haviam
se fixado e começado a enxergar o mundo. Por isso ele invadiu o espaço
dela: ela era coisa sua, por amor e por direito de propriedade. O olhar
do menino voa no devaneio da inocência e das coisas postas em seu devido
lugar.
Ela, ao contrário,
não se moveu. Presa à imagem que os senhores queriam fixar, aos gestos
codificados de seu estatuto. Sua mão direita, ao lado do menino, está
fechada no centro da foto, na altura do ventre, de onde nascera outra
criança, da idade daquela. Manteve o corpo ereto, e do lado esquerdo,
onde não se fazia sentir o peso do menino, seu colo, seu pescoço, seu
braço escaparam da roupa que não era dela, impuseram à composição da
foto a presença incontida de seu corpo, de sua nudez, de seu ser
sozinho, da sua liberdade.
O mistério dessa foto feita há mais de
150 anos chega até nós. A imagem de uma união paradoxal mas admitida.
Uma união fundada no amor presente e na violência pregressa. Na
violência que fendeu a alma da escrava, abrindo o espaço afetivo que
está sendo invadido pelo filho de seu senhor.
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