Era julho de 1817 quando Carl
Friedrich Philipp von Martius e Johann Baptist von Spix aportaram no Rio
de Janeiro, cerca de três meses após deixarem Trieste, hoje cidade italiana.
A dupla de pesquisadores encabeçava uma ambiciosa expedição idealizada
anos antes, mas que só pôde se concretizar graças à ocasião do casamento
da arquiduquesa Leopoldina com o príncipe herdeiro Pedro I — o rei
Maximiliano José I da Baviera usou de seu poder de influência para
agregar os destacados cientistas ao séquito da noiva: Spix, mais
experiente e prestigiado, se valeria de sua formação em medicina e
zoologia; Martius, um pouco mais jovem, numa carreira em franca
ascensão, tinha como especialidade a botânica. Não será supérfluo
lembrar que, menos de uma década antes, em 1808, Dom João decretara a
abertura dos portos brasileiros às nações amigas de Portugal, fato cuja
relevância leva historiadores a, não raramente, denominá-lo como
um “novo descobrimento do Brasil”. Essa interpretação se justifica pela
renovação do interesse europeu pela exploração da América, que já não se
resumia ao campo político-econômico, estendendo-se agora ao âmbito
cultural com igual disposição.
Escritas parte durante a árdua
empreitada, parte após o retorno a Munique (que se deu aproximadamente
três anos depois de percorridos os primeiros quilômetros), as anotações
dos dois bávaros renderam não só a edição em três volumes da Viagem pelo Brasil, como também alimentaram a composição de um catálogo da vegetação do país, a Flora brasiliensis,
além de uma série de outros textos sobre os mais variados assuntos,
incluindo o controverso — e entretanto relativamente bem recebido na
época — Como se deve escrever a história do Brasil, assinado por
Martius. Dos numerosos ramos possíveis de análise e interpretação desses
relatos, pode-se destacar um: o influxo de mão dupla entre ciência,
arte e filosofia que os rege e deles emana. O estereótipo do acadêmico
dos nossos tempos, preso entre artigos, pareceres e congressos pouco tem
a ver com a índole impetuosa de Spix e Martius, responsáveis por feitos
que vão do grandioso ao doentio, como se bem poderia adjetivar a fúria
colecionista que os levou a arrastarem consigo um casal de comá-tapuias
no retorno à Europa. Tomados como espécimes, a condição dos dois
indígenas mal se diferia daquela de um animal a ser embalsamado e
exibido num museu. Sabe-se lá o que deles seria feito se tivessem
sobrevivido à viagem e ao impiedoso frio de Munique.
O imaginário romântico e os relatos de viagem
O complexo ideário romântico abriga,
entre tantas outras tensões, a valorização da individualidade sobre o
pano de fundo da busca por uma identidade nacional. Também sob esses
elementos podemos compreender esse que talvez tenha sido o último
momento da história em que ainda era possível almejar um conhecimento
total, indiferente às compartimentações típicas do saber especializado.
Com o crescimento no número de viagens marítimas de longa distância, em
decorrência do desenvolvimento tecnológico que pouco a pouco as tornava
mais seguras e menos demoradas, combinado ao aprimoramento das técnicas
de impressão e reprodução de textos e imagens, floresceu o gênero dos relatos de viagens,
que tão bem se prestavam à necessidade de registro de mundo que se
apresentavam como novos ao olhar europeu. Una-se a isso as correntes
filosóficas, de Rousseau a Schiller, que viam na natureza um meio de
redenção para o homem, e se entenderá o fascínio que o verde intacto —
que começava a rarear na Europa urbanizada, mas ainda era pujante no
Brasil — provocava nos alemães.
Entremeados a descrições de um duro linguajar científico, encontram-se na Viagem pelo Brasil
trechos de notável matiz literário, que evidenciam o anseio de Martius e
Spix de dar ao seu relato uma dimensão estética algo estranha ao que
hoje entende-se por ciência. Veja-se uma passagem que registra as
impressões do Distrito Diamantino:
“Quase parece que a natureza
escolheu para a região originária dessas pedras preciosas os mais
esplêndidos campos e os guarneceu com as mais lindas flores. Tudo que
até agora havíamos visto de mais belo e soberbo em paisagens, parecia
incomparavelmente inferior diante do encanto que se oferecia aos nossos
olhos admirados. Todo o Distrito Diamantino parece um jardim
artisticamente plantado, a cuja alternativa de românticos cenários
alpestres, de montes e vales, se aliam mimosas paisagens de feição
idílica.”
Noutros momentos, a leitura do relato
proporciona um sentimento de obsessão pelo registro. Lado a lado
colocam-se em comparação procedimentos técnicos aqui encontrados com os
praticados na Europa; análises mineralógicas, descrições geológicas e
climáticas; inventários de plantas e animais; comentários sobre a
economia e a história das localidades que visitam; exposição de
costumes; julgamentos morais a respeito da natureza e do comportamento
daqueles que encontram; exaltação de indivíduos tidos como ilustres e
muito mais, tudo conjugado às anotações do dia a dia da comitiva, de tal
forma que se torna forçosa a conclusão de que não havia absolutamente
nada da realidade brasileira que não lhes interessasse.
“A convivência com os colonos
brasileiros […] já lhes deu [aos macuanis] alguma noção de civilização e
aqui no Alto dos Bois, onde são uns 30 atualmente, costumam esses
índios lavrar a terra e plantar milho, feijão e mandioca, embora as
caçadas sejam a sua ocupação predileta. […] já os traços da fisionomia
eram animados pelos primeiros raios de civilização, e a cor vermelha não
muito carregada, porém mais semelhante à dos mongóis […]. Habitam
choças baixas […]. Creem num deus e em muitos demônios […]. Também se
mostra a sua indolência no fato de não festejarem época alguma da vida
com regozijos, excetuando a entrada das mulheres na puberdade, quando se
organizam danças à noite. […]. Os homens são inclinados à poligamia, e
se aqui se abstêm dela é devido à influência dos soldados brasileiros;
mas, ciumentos é que não são, pois, às vezes, até chegam a oferecer suas
mulheres aos estranhos, e nisso diferem muito dos botocudos […].
Costumam essas macuanis enterrar os cadáveres dos filhos pequenos nas
suas choças; os dos adultos, porém, longe da aldeia.
Sobre a sepultura destes últimos, que eles cercam com um rego de água,
depositam carne e frutos, e acendem fogo, a fim de que nada falte ao
defunto. Tempos depois, espetam uma lança sobre o túmulo, ou constroem
por cima uma cabana. Nesses usos, nota-se semelhança notável com os dos
negros da África tropical.”
Vê-se a facilidade com que a prosa
desliza pelo modo de subsistência da tribo, passando por uma concepção
hierárquica de raças, seguindo-se a isso observações sobre casamento e
religião, a comparação entre os traços físicos dos nativos e os de povos
distantes, e assim por diante, sem que o relato, no entanto, redunde
numa massa desordenada de informações — as qualidades literárias do
texto não são desprezíveis.
A exploração do Brasil como uma variante do mito fáustico
Em “Goethe à brasileira”, texto publicado pela Revista FAPESP,
Marcus Mazzari, professor do departamento de teoria literária e
literatura comparada da FFLCH-USP, nos conta que nas fichas de
empréstimos da biblioteca de Weimar consta que Goethe retirou várias
vezes a Viagem pelo Brasil.
Mais do que isso: em trechos de seu diário registra que, em homenagem
ao “brasileiro Martius”, como ele o chamava, pendurou em seu escritório
um mapa do Brasil numa das visitas do naturalista ao seu escritório.
Disso e de outras informações, como a de que Goethe chegara a conhecer
canções tupi e as acrescentara ao vasto cabedal de referências para a
construção de Fausto,
como nos informa Mazzari em uma de suas notas para uma tradução do
poema, chega-se à duas conclusões: a de que os relatos sobre o Brasil
dessa época foram um manancial de inspiração para a literatura romântica
(principalmente via Goethe, um de seus precursores); e de que a obra de
Martius e Spix ocupa posição privilegiada entre as fontes que serviram
de substrato para essa produção. O tema fáustico, nascido de lendas
populares do território alemão, e tendo tomado uma forma literária mais
sofisticada por muitos outros autores além de Goethe, como Thomas Mann e
Guimarães Rosa, se insinua fortemente na jornada de Martius e Spix,
sustentada pela insaciável sede de apreensão da realidade em todos os
seus meandros — o conhecimento como a forma de poder mais elevada.
Em suma, a Viagem pelo Brasil
é um daqueles trabalhos que se encontram entre os nós mais importantes
das ramificações da história ocidental — seja pelo viés artístico, pelo
científico ou pelo político-ideológico.
Referências
ANDRADE, Rodrigo de Oliveira. “Goethe à brasileira”. Pesquisa Fapesp,
São Paulo, ed. 242, p. 94-95, abr. 2016. Disponível em:
<http://revistapesquisa.fapesp.br/2016/04/19/goethe-a-brasileira/>.
Acesso em: 14 maio 2018.
LISBOA, Karen Macknow. A nova Atla?ntida de Spix e Martius: Natureza e civilizac?a?o na Viagem pelo Brasil, 1817-1820. São Paulo: Hucitec, 1997.
GOETHE, Johann Wolfgang von. Fausto I. São Paulo: Editora 34, 2004. Tradução de Jenny Klabin Segall. Apresentação, notas e comentários de Marcus Mazzari.
Angelo Assunção Damasceno Orio é graduando em Letras – com habilitação em português e linguística – pela FFLCH-USP.
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