Descobeto em 2011 na zona portuário do Rio, após ficar 168 anos
soterrado, o Cais do Valongo traz com ele memórias da escravidão no
país. É essa razão porque acaba de se tornar Patrimônio Mundial da Unesco:
o resgate de uma história que havia sido literalmente enterrada durante
o "processo civilizatório" da então capital do Brasil: em 1843, foi
feito um aterro de 60 centímetros de espessura precisamente sobre o Cais
do Valongo, para a construção de um novo ancoradouro para receber a
imperatriz Teresa Cristina, que se casaria com dom Pedro II.
"O
Cais do Valongo é um lugar simbólico, porque ali está o passado da
população afrodescendente do país", explica Tânia Andrade Lima,
arqueóloga do Museu Nacional que supervisiona as obras no porto. "Ele
não foi encontrado por acaso. Desde 2010, sabíamos da existência de um
sítio arqueológico naquele lugar". Havia um totem no local informando
que ali existira o Cais da Imperatriz, também enterrado no início do
século 20, dessa vez para a reforma de toda a região central do Rio. Em
nenhuma referência ao Valongo, que recebeu o maior número de africanos
na Américas. Durante as escavações, foram descobertos os dois
ancoradouros, um sobre o outro. Junto a eles, uma grande quantidade de
objetos de uso pessoal, especialmente amuletos e objetos de culto vindos
do Congo, Angola e Moçambique.
"Aquela região, mais do que o
cais, era um complexo de escravos, que incluía o lazareto, para onde os
negros que chegavam doentes iam se curar ou morrer, o Cemitério dos
Pretos Novos e os armazéns de engorda e venda dos escravos, que se
concentravam na Rua do Valongo, atual Rua Camerino", diz Tânia. A área
ia desde a atual Rua Barão de Tefé até a Cidade do Samba, englobando os
bairros da Gamboa, da Saúde e do Santo Cristo.
Até meados da
década de 1770, os escravos desembarcavam na Praia do Peixe, atual Praça
15, e eram negociados na Rua Direita, hoje Rua 1º de Março. Bem no
Centro do Rio, à vista de moradores e dos estrangeiros que chegavam para
conhecer a colônia. Uma nova legislação, de 1774, estabelecia a
transferência desse mercado para a região do Valongo. Os motivos
apresentados eram sanitários: proteger os cidadãos das doenças trazidas
pelos negros. Mas já havia, permeando a decisão, a sensibilidade de que
manter aquele comércio no coração do Rio maculava sua imagem de cidade
europeia.
A mudança partiu do segundo Marquês de Lavradio, dom
Luís de Almeida Portugal Soares de Alarcão d'Eça e Melo Silva
Mascarenhas, vice-rei do Brasil, alarmado com "o terrível costume de tão
logo os pretos desembarcarem no porto vindos da costa africana,
entrarem na cidade através das principais vias públicas, não apenas
carregados de inúmeras doenças, mas nus". Mas ainda não havia o
ancoradouro, e a alternativa encontrada foi desembarcar os escravos na
alfândega e imediatamente enviá-los de bote ao Valongo, de onde
saltariam diretamente na praia.
Em 1779 o comércio de africanos se
estabeleceu finalmente na região do Valongo. Cresceu a cada ano, e
viveu seu auge de 1808, com chegada da família real, a 1831, ano em que o
comércio de escravos da África para o Brasil passou a ser feito às
escondidas. Só em 1811 o cais foi construído, para que o desembarque
fosse direto no local. "A partir de 1808 o tráfico quase dobra,
acompanhando a cidade que, com a vinda da corte, passa de 15 mil para 30
mil habitantes. De 1811 a 1831, metade da economia do país, metade do
PIB, é movida a escravos" diz o historiador Carlos Líbano, da
Universidade Federal da Bahia (UFBA.
É nesse período de apenas 20
anos que 1 milhão de africanos - dos 4 milhões que aqui chegaram até
1850 - entram no Brasil pelo novo ancoradouro. A distância do Centro não
impediu, como gostariam as autoridades, que olhares estrangeiros
continuassem a descrever o funcionamento do mercado de escravos do Rio. A
viajante inglesa Maria Graham, por exemplo, que esteve no Brasil entre
1821 e 1823, escreveu em seu Diário de uma Viagem ao Brasil
que, no Valongo, "todo o tráfico de escravos surge com todos os seus
horrores perante nossos olhos". Cada "peça" tinha um preço. Um africano
novo e saudável, em 1811, podia chegar a algo em torno de cem mil réis,
mas podia alcançar 200 mil se tivesse alguma habilidade especial, como a
carpintaria. Como comparação, uma casa pequena no Rio de Janeiro
custava cerca de um conto de réis, o que daria para comprar dez escravos
normais ou cinco habilidosos.
No fim dos anos 20 do século 19, o
tráfico de escravos para o Brasil vivia seu apogeu, e o Valongo era a
principal porta de entrada principalmente para os negros vindos de
Angola, da África Oriental e da Centro-Ocidental - nos entrepostos do
Maranhão e da Bahia, ainda chegavam navios vindos respectivamente da
Guiné e da África Ocidental. Mas a maioria tinha necessariamente que ao
menos passar pelo Valongo, para que os traficantes pagassem seus
impostos. "A renda da tributação do mercado negreiro era alta. Mas o Rio
era um polo distribuidor de escravos, não concentrador", explica Carlos
Líbano.
Esses escravos saíam da capital para as plantações de
café, fumo e açúcar do interior e de outras regiões do país,
especialmente no Vale do Paraíba e em São Paulo. "O escravo é o insumo
básico dessa economia, o motor, o petróleo dela", diz Líbano. Os que
ficavam geralmente eram os escravos domésticos, além dos usados como
força de trabalho nas obras públicas. Muitos eram especialistas, como
sapateiros, quitandeiras, cabeleireiros ou ourives, que gahavam do seu
senhor o direito de exercer suas profissões na rua, tornando-se escravos
de ganho. Parte do dinheiro ficava para o próprio escravo, que tinha
sua vida, independente da do patrão: pagava aluguel e andava pelas ruas.
Quem conseguia juntar dinheiro comprava a alforria.
Em 1831 o
Valongo foi fechado, quando o tráfico transatlântico foi proibido por
pressão da Inglaterra. A norma foi solenemente ignorada e recebeu a
alcunha irônica de "lei para inglês ver". Os traficantes usavam portos
clandestinos para trazer sua mercadoria. Em 1850, com a assinatura da
Lei Eusébio de Queirós, pôs-se fim verdadeiramente ao tráfico para o
Brasil, embora a escravidão persistisse até a Abolição, em 1888. "A
última remessa de que se tem informação é de 1872" conta Líbano. A área
do Valongo, entre 1850 e 1920, se transformou no que ficou conhecido
como Pequena África: um espaço ocupado por negros libertos de diversas
nações.
Nenhum comentário:
Postar um comentário