Astolfo Araújo, professor da USP
Mas as escavações da equipe de Guidon no Piauí começaram a contestar esse modelo já em 1983. Na ocasião, pedaços de carvão encontrados
no sítio Paraguaio, o primeiro investigado pela pesquisadora, traziam
indícios de que a ocupação ali era de, ao menos, 31.500 anos atrás. Em
1984, uma nova datação, também em pedaços de carvão, marcava 32.160
anos. Os achados foram publicados na revistaNature, em 1986. Com o
passar dos anos, no entanto, descobriram-se indícios de 58.000 anos
atrás e, em 1991, chegou-se à data que deixava, e muito, Clóvis para
trás: os 100.000 anos. “Como o Carbono 14 não funciona para datações tão
antigas, aplicamos a termoluminescência, que faz com que o material
emita uma luz que permite saber quando o fogo foi aceso”, conta ela.
As análises, consideradas “irrefutáveis” pela pesquisadora foram
contestadas por pesquisadores que diziam que o carvão descoberto seria
consequência de fogueiras naturais. Guidon e sua equipe afirmavam que as
fogueiras não eram naturais, pois as marcas estavam apenas em paredes
dentro do abrigo. Próximo a esses locais, foram encontradas evidências
de pedras lascadas pelo homem e de pinturas rupestres. A teoria da
pesquisadora é de que o homem teria chegado diretamente à América do
Sul, vindo da África, na época de uma grande seca no continente
africano.
A querela científica, no entanto, perdurou devido ao que
alguns pesquisadores chamam de “imperialismo acadêmico” norte-americano.
Só que evidências achadas justamente em solo norte-americano passaram a
demonstrar nos últimos anos que a teoria de Clovis não se sustentava
mais.
Em 2008, em Oregon, pesquisadores descobriram por meio de
análises de DNA em ossadas humanas que a ocupação já havia acontecido há
14.000 anos. No Texas, em 2011, descobriram 15.528 artefatos no chamado
complexo Buttermilk Creek, datados de um período entre 13.200 a 15.500
anos. E um pesquisador norte-americano chamadoTom Dillehay, na década
anterior, já havia conseguido reconhecimento acadêmico para suas
descobertas no sítio arqueológico Monte Verde, no Chile, onde objetos
encontrados remontavam a 12.500 anos.
No ano passado, com a
publicação dos novos achados na Serra da Capivara, a comunidade
científica voltou os olhos novamente para o Piauí. Os indícios de pedras
lascadas ou polidas de 22.000 anos são menos polêmicos que os pedaços
de carvão das fogueiras e, por isso, a tese de Guidon começa a não
parecer tão “absurda”.
“Dizer que a chegada do homem na América há
100.000 anos é algo absurdo não é uma afirmação muito científica. Em
ciência, não se pode dizer, a priori, que algo não aconteceu. Mas é
preciso de mais dados [para a tese de Guidon]”, diz Astolfo Araújo,
professor do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São
Paulo (USP).
“É lógico que falar em 100.000 anos deixa a gente
assustado. Mas, por outro lado, a presença do homem na África é de
200.000 anos atrás. Não é impossível que alguém tenha vindo de barco
para a América do Sul”, continua ele.
Ele ressalta ainda que uma das
possibilidades para o intervalo entre os indícios de 100.000 anos atrás
e os de 22.000 anos poderia ser o desaparecimento do primeiro grupo
populacional, mais antigo, na América do Sul. “Mapeamentos do genoma
descobriram que nós temos muito pouca variabilidade genética. Isso
poderia significar que a nossa população quase se extinguiu”, explica
ele. Um estudo publicado em 2008 no American Journal Of Human Genetics
apontou que há 70.000 anos a população humana pode ter encolhido para
apenas 2.000 pessoas por conta do clima extremo. Essa “quase extinção”
teria ocorrido justamente na época do intervalo dos achados na América.
Com isso, defende ele, existe a possibilidade de que tenha havido duas
entradas de homens na América. Hipótese defendida também pelo professor
do Instituto de Biociências da USP Walter Neves, descobridor de um
crânio de 11.000 anos na região de Lagoa Santa (Minas Gerais), apelidado
de Luiza. Para Neves, no entanto, houve duas ondas migratórias, ambas
vindas da Ásia. A primeira, há 14.000 anos, foi de indivíduos parecidos
com Luiza, de morfologia semelhante à dos australianos e africanos
atuais. Essa espécie não teria deixado descendentes.
A segunda leva,
de acordo com ele, chegou há 12.000 anos. Eram indivíduos de tipo
físico asiático, semelhante aos índios americanos atuais, explicou, em
entrevista à revista da Fapesp. Neves, que foi “inimigo científico” de
Guidon por anos, diz que finalmente visitou o parque da Capivara para
avaliar a coleção lítica dos sítios e saiu de lá “99,9% convencido de
que houve no local uma ocupação anterior a 30.000 anos”. Mas a dúvida
que restou ainda é significativa, disse ele na mesma entrevista.
Mas
a disputa entre as teses científicas continua. Nesta semana,
pesquisadores publicaram um artigo na revista Science descobriram no
México um esqueleto de 12.000 anos que, segundo eles, sustenta tese de
que as populações que chegaram à América vieram da Ásia pela região do
estreito de Bering, posteriormente se espalhando para o sul. Com a
descoberta, eles descartam a possibilidade de que tenha havido diversas
ondas de povoadores. O crânio da menina de aproximadamente 15 anos,
apelidada de Naia, tem a morfologia dos australianos e africanos, mas a
análise do DNA mitocondrial extraído dos dentes do esqueleto é
semelhante a dos índios atuais. Assim, a Luiza descoberta por Neves
teria os mesmos ancestrais de Naia, de acordo com a pesquisa publicada
na Nature. A descoberta foi vista com ceticismo por Neves, em entrevista
ao jornal Folha de S.Paulo.
O fato é que a falta de esqueletos
antigos que poderiam trazer afirmações mais precisas sobre a questão é
um problema na América do Sul. Por isso, sítios como os do Parque
Nacional da Serra da Capivara, onde a pesquisa continua, são essenciais
para que o enigma chegue perto do fim. No entanto, aos 81 anos, Guidon
luta para fazer novos discípulos que possam continuar com seu trabalho
para manter o local, que recebe pouca verba e corre o risco de se tornar
cada dia mais precário.
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