Eles faziam do assassinato um ritual macabro. O longo punhal, de até
80 centímetros de comprimento, era enfiado com um golpe certeiro na base
da clavícula – a popular “saboneteira” – da vítima. A lâmina pontiaguda
cortava a carne, seccionava artérias, perfurava o pulmão, trespassava o
coração e, ao ser retirada, produzia um esguicho espetaculoso de
sangue. Era um policial ou um delator a menos na caatinga – e um morto a
mais na contabilidade do cangaço. Quando não matavam, faziam questão de
ferir, de mutilar, de deixar cicatrizes visíveis, para que as marcas da
violência servissem de exemplo. Desenhavam a faca feridas profundas em
forma de cruz na testa de homens, desfiguravam o rosto de mulheres com
ferro quente de marcar o gado.
Quase 80 anos após a morte do
principal líder do cangaço, Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião, a
aura de heroísmo que durante algum tempo tentou-se atribuir aos
cangaceiros cede terreno para uma interpretação menos idealizada do
fenômeno. Uma série de livros, teses e dissertações acadêmicas lançados
nos últimos anos defende que não faz sentido cultuar o mito de um
Lampião idealista, um revolucionário primitivo, insurgente contra a
opressão do latifúndio e a injustiça do sertão nordestino. Virgulino não
seria um justiceiro romântico, um Robin Hood da caatinga, mas um
criminoso cruel e sanguinário, aliado de coronéis e grandes
proprietários de terra. Historiadores, antropólogos e cientistas sociais
contemporâneos chegam à conclusão nada confortável para a memória do
cangaço: no Brasil rural da primeira metade do século 20, a ação de
bandos como o de Lampião desempenhou um papel equivalente ao dos
traficantes de drogas que hoje sequestram, matam e corrompem nas grandes
metrópoles do país. Guardadas as devidas proporções, o cangaço foi algo
como o PCC dos anos 1930.
Cangaceiros e traficantes
Foram
os cangaceiros que introduziram o sequestro em larga escala no Brasil.
Faziam reféns em troca de dinheiro para financiar novos crimes. Caso não
recebessem o resgate, torturavam e matavam as vítimas, a tiro ou
punhaladas. A extorsão era outra fonte de renda. Mandavam cartas, nas
quais exigiam quantias astronômicas para não invadir cidades, atear fogo
em casas e derramar sangue inocente. Ofereciam salvo-condutos, com os
quais garantiam proteção a quem lhes desse abrigo e cobertura, os
chamados coiteiros. Sempre foram implacáveis com quem atravessava seu
caminho: estupravam, castravam, aterrorizavam. Corrompiam oficiais
militares e autoridades civis, de quem recebiam armas e munição. Um
arsenal bélico sempre mais moderno e com maior poder de fogo que aquele
utilizado pelas tropas que os combatiam.
“A violência é mais
perversa e explícita onde está o maior contingente de população pobre e
excluída. Antes o banditismo se dava no campo; hoje o crime organizado é
mais evidente na periferia dos centros urbanos”, afirma a antropóloga
Luitgarde Oliveira Cavalcanti Barros, professora da Universidade do
Estado do Rio de Janeiro e autora do livro A Derradeira Gesta: Lampião e Nazarenos Guerreando no Sertão.
A professora aponta semelhanças entre os métodos dos cangaceiros e dos
traficantes: “A maioria dos moradores das favelas de hoje não é composta
por marginais. No sertão, os cangaceiros também eram minoria. Mas, nos
dois casos, a população honesta e trabalhadora se vê submetida ao regime
de terror imposto pelos bandidos, que ditam as regras e vivem à custa
do medo coletivo”.
Além do medo, os cangaceiros exerciam fascínio
entre os sertanejos. Entrar para o cangaço representava, para um jovem
da caatinga, ascensão social. Significava o ingresso em uma comunidade
de homens que se gabavam de sua audácia e coragem, indivíduos que
trocavam a modorra da vida camponesa por um cotidiano repleto de
aventuras e perigos. Era uma via de acesso ao dinheiro rápido e sujo de
sangue, conquistado a ferro e a fogo. “São evidentes as correlações de
procedimentos entre cangaceiros de ontem e traficantes de hoje. A rigor,
são velhos professores e modernos discípulos”, afirma o pesquisador do
tema Melquíades Pinto Paiva, autor de Ecologia do Cangaço e membro do
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.
Homem e lenda
Virgulino
Ferreira da Silva reinou na caatinga entre 1920 e 1938. A origem do
cangaço, porém, perde-se no tempo. Muito antes dele, desde o século 18,
já existiam bandos armados agindo no sertão, particularmente na área
onde vingou o ciclo do gado no Nordeste, território onde campeava a
violência, a lei dos coronéis, a miséria e a seca. A palavra cangaço,
segundo a maioria dos autores, derivou de “canga”, peça de madeira
colocada sobre o pescoço dos bois de carga. Assim como o gado, os
bandoleiros carregavam os pertences nos ombros.
Um dos precursores
do cangaço foi o lendário José Gomes, o endiabrado Cabeleira, que
aterrorizou as terras pernambucanas por volta de 1775. Outro que marcou
época foi o potiguar Jesuíno Alves de Melo Calado, o Jesuíno Brilhante
(1844-1879), famoso por distribuir entre os pobres os alimentos que
saqueava dos comboios do governo. Mas o primeiro a merecer o título de
Rei do Cangaço, pela ousadia de suas ações, foi o pernambucano Antônio
Silvino (1875-1944), o Rifle de Ouro. Entre suas façanhas, arrancou os
trilhos, perseguiu engenheiros e sequestrou funcionários da Great
Western, empresa inglesa que construía ferrovias no interior da Paraíba
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